Giovanni Fighera
Em 28 de julho de 1914, o Império
austro-húngaro declara guerra ao Reino da Sérvia. Poucos dias mais tarde, em 4
de agosto, as tropas alemãs entram no território belga e avançam depois até a
quarenta quilômetros de Paris. O general francês Joseph Simon Gallieni decide
de enfrenar em campo aberto o inimigo na batalha do Marne. O avanço alemão é
dessa forma bloqueado. Também na província de Flandres, em Ypres, se combate
obstinadamente contra os alemães. Em breve tempo o sistema das alianças leva
muitas potências a entrar no conflito.
Para a celebração do Natal de 1914, o Papa Bento XV pediu que fosse
estipulada uma trégua entre as duas facções. Nem todos os Estados em guerra são
favoráveis e o acordo não sancionado. Mas, exatamente em Ypres acontece uma
trégua não oficial, que dura somente alguns dias, testemunhada por jornais,
cartas, documentos fotográficos.
O que acontece naquela noite de Natal? Os soldados alemães acendem
luzes sobre árvores de Natal e começam a entoar cantos natalinos: «Stille nacht, heilige nacht», ou melhor,
“Noite Feliz, Noite Feliz”. Os ingleses respondem primeiro com um aplauso e
depois com um coro de vozes menos virtuoso, mas não menos comovente em relação
àquele alemão: «The first nowell the
angel did say…». Os Alemães, por sua vez, aplaudem e depois prosseguem com
o canto «O tannenbaum, o tannenbaum».
A este ponto, o coro das vozes dos dois exércitos se une e os Alemães cantam a
mesma canção em latim: «Adeste fideles».
Os Alemães mostram cartazes com as inscrições: «Feliz Natal» e «Não
atirem, nós não atiraremos». E As opostas facções depõem as armas, trocam
saudações e presentes, fotografias das famílias e do tempo de paz, jogam junto.
É um fato surpreendente, inesperado, não imposto por Comandos supremos, mas que
surge espontaneamente por um sentimento de irmandade dos soldados de ambos os lados:
uma fenda de luz na escuridão da tragédia da guerra, que parece prefigurar a
possibilidade de paz. Alemães e Ingleses não são assim diferentes, são unidos
pela mesma experiência e pelo mesmo coração: brilha no fundo da alma de ambos o
mesmo desejo de realização, que não pode ser totalmente aniquilado nem mesmo
pela horripilante experiência da guerra. Da frente de combate chegam às casas
dos familiares muitas cartas que narram este milagre da trégua de Natal. Os
jornais censuram, ao invés, por muitos dias o acontecimento. Somente no último
dia do ano, o «New York Times» traz a
notícia. Então, em janeiro também os jornais britânicos ressaltam o fato,
enquanto os alemães darão menos eco ao acontecimento, e os franceses o censuram
totalmente.
Os Estados Maiores não somente condenam o acontecido, mas procuram
também apagar os traços. O confraternizar com o
inimigo é considerado como traição.
Recordará nas suas memórias o neto do Kaiser, o príncipe herdeiro
Guglielmo di Prussia: «Kirchhoff, o cantor lírico que prestava serviço no staff
do Comando, cantou as suas canções na noite santa nas trincheiras da frente
(...). no dia sucessivo me contou que alguns soldados franceses subiram no
parapeito e tinham continuado a aplaudir; no final também pediram o bis. E
assim, em meio à amarga realidade da guerra em trincheira, com toda a sua
frieza, um canto de Natal permitiu o milagre e criou uma ponte entre os
homens».
Um livro intitulado La tregua di Natale. Lettere dal fronte.
Natale 1914: una storia sorprendente nel racconto dei soldati che ne furono
protagonisti (edizioni Lindau) – A trégua de Natal. Cartas da frente de
combate. Natal de 1914: uma história surpreendente na narração dos soldados que
foram protagonistas -, publicado pela
ocasião do centenário do evento, recolhe testemunhos dos soldados sobre aquele
milagre. A maior parte daqueles soldados não retornará as suas casas.
Nós propomos a carta de um soldado inglês de nome Tom, que narra à
irmã o fato surpreendente:
«Janet, cara irmã, são duas da manhã e a maior parte dos homens dormem
nos seus buracos, mas eu não posso adormecer se antes não te escrevo sobre os
maravilhosos acontecimentos da vigília de Natal. Na verdade, o que aconteceu é quase uma
fábula, e se não o tivesse visto com meus olhos, não acreditaria. Tente
imaginar: enquanto tu e a família cantavam os hinos diante da lareira em
Londres, eu fiz o mesmo com os soldados inimigos aqui nos campos de batalha da
França! As primeiras batalhas fizeram tantos mortos, que ambos os lados se entrincheiraram,
na espera dos reforços. Então ficamos principalmente nas trincheiras a esperar.
Mas que espera tremenda! Esperamos a cada momento que se dê um ataque de
artilharia sobre nós, matando e mutilando homens. E de dia não ousamos levantar
a cabeça para fora da terra, por medo do atirador. E depois a chuva: cai quase
todos os dias. Naturalmente acaba acumulando exatamente nas trincheiras, as
quais devemos esgotar com panelas.
E com a chuva veio a lama onde afunda mais que o pé. Ela sobe e suja
tudo e suga as botas. Um recruta teve os pés atolados na lama e, depois também
as mãos quando tentou de salvar-se (...). com tudo isso, não podíamos fazer
outra coisa senão experimentar curiosidades sobre os soldados alemães diante de
nós. Além do mais, enfrentam os mesmos perigos que nós e, também eles estão na
mesma lama. E a trincheira deles está somente a cinquenta metros diante de nós.
Entre nós está a terra de ninguém, afiada dos dois lados por arame farpado, mas
estão tão próximos que escutamos as vozes deles. Obviamente os odiamos quando
matam os nossos companheiros.
Mas outras vezes rimos deles e sentimos de ter algo em comum. E agora
resulta que eles têm os mesmos sentimentos. Ontem pela manhã, na vigília,
tivemos a nossa primeira geada. Embora estivéssemos com frio, a saudamos com
alegria, porque pelo menos endureceu a lama. Durante a jornada houve ataques da
fuzilaria. Mas, quando a tarde chegou, os disparos pararam inteiramente. O
nosso primeiro silêncio total há meses! Esperávamos que prometesse uma festa
tranquila, mas não esperávamos o que aconteceu. Soldados que se
confraternizaram fora das trincheiras. De repente um camarada me sacode e
grita: “Vem ver! Vem ver o que fazem os alemães! Peguei o fuzil, fui até a
trincheira e, com cautela, levantei a cabeça acima dos sacos de areia”. “Jamais
acreditei de poder ver uma coisa tão estranha e comovente. Aglomerados de
pequenas luzes brilhavam por toda a linha alemã, à direita e à esquerda, até
perder de vista. ‘O que é?’ perguntei ao companheiro, e John respondeu:
‘Árvores de Natal!’ Era verdade. Os alemães tinham preparado árvores de Natal
diante da trincheira deles, iluminadas com velas”. “E depois ouvimos as suas
vozes que entoavam uma canção: «Stille nacht, heilige nacht…». O canto na
Inglaterra não o conhecemos, mas John o conhece e o traduziu: “Noite Feliz,
Noite Feliz”.
Jamais ouvi um canto mais belo e mais significativo naquela noite clara e
silenciosa. Quando o canto terminou, os homens na nossa trincheira aplaudiram.
Sim, soldados ingleses que aplaudiam os alemães! Depois um de nós começou a
cantar, e nos sentimos todos unidos a ele: «The first nowell the angel did
say…». Para dizer a verdade, não eram tão bons no canto como os alemães, com as
suas belas harmonias. Mas, responderam com aplausos entusiasmados e, depois,
entoaram outra: «O tannenbaum, o tannenbaum…». À qual nós respondemos com: «O
come all ye faithful…». E desta vez se uniram ao nosso coro, cantando a mesma
canção, mas em latim: «Adeste fideles…». “Ingleses e alemães que entoam em coro
através da terra de ninguém!”. Não podia pensar em nada mais surpreendente, mas
aquilo que aconteceu depois foi ainda mais. “Ingleses, venham para fora!”, os
escutamos gritar, “vocês não atirem, nós não atiramos!”. Na trincheira olhamos
um para o outro não sabendo o que fazer. Depois, um gritou por ironia: “Venham
para fora vocês!”. Com nosso espanto, vimos duas figuras sair da trincheira de
frente, atravessar o arame farpado e ir para o descoberto. Um deles disse:
“Mande um oficial para acertar detalhes”. Vi um dos nossos com um fuzil
apontado e, sem dúvida também outros fizeram o mesmo – mas o capitão gritou
“Não disparem!”. Depois subiu para fora da trincheira e foi ao encontro dos
alemães na metade do caminho. Os ouvimos falar e poucos minutos depois o capitão
retornou, com um cigarro alemão na boca! Ao mesmo tempo grupos de dois ou três
homens saiam das trincheiras e vinham em nossa direção.
Alguns de nós também saíram e em poucos minutos estávamos na terra de
ninguém, estendendo as mãos a homens que tinham tentado nos matar poucas horas
antes. Acendemos uma grande fogueira e, nós todos em torno, ingleses em caqui e
alemães em cinza. Devo dizer que os alemães estavam vestidos melhor, com as
fardas preparadas para a festa. Somente um pequeno grupo dos nossos fala o
alemão, mas muitos alemães sabiam o inglês. A um deles eu perguntei como isso é
possível. “Muitos de nós trabalhamos na Inglaterra”, respondeu. “Antes disto
estive como garçom no Hotel Cecil”. “Talvez tenha servido sua mesa!”.
“Talvez!”, respondi rindo. Me disse que tinha uma namorada em Londres e que a
guerra interrompeu o seu projeto de matrimônio. E eu lhe disse: “Não se
preocupe, antes da Páscoa derrotaremos vocês e, você poderá retornar a
esposá-la”. Começou a rir, depois me perguntou se poderia enviar um cartão para
a namorada e, eu o prometi. Um outro alemão tinha sido carregador de bagagens
na Victoria Station.
Me fez ver as fotos da sua família que está em Mônaco. Também aqueles que não
conseguiam falar trocavam presentes, os seus charutos com os nossos cigarros,
nós o chá e eles o café, nós a carne enlatada e eles as salsichas. Trocamos
insígnias e botões, e um dos nossos conseguiu até o capacete! Eu também troquei
um canivete com um cinturão de couro, uma bela recordação que te mostrarei
quando retornar para casa. Nos deram por certo que a França está no final e a
Rússia quase desmoronando. Nós descordamos deles dizendo que não era
verdadeiro, e eles, “Está bem, vocês acreditam nos seus jornais e nós, nos
nossos”. É claro que lhes falam dos fardos, mas depois de tê-los encontrado
também eu me pergunto até que ponto os nossos jornais dizem a verdade. Estes
não são os “bárbaros selvagens” sobre os quais tínhamos lido tanto. São homens
com casas e famílias, medos e esperanças e, sim, amor pela pátria. Ou seja, são
homens como nós. Como conseguiram nos fazer crer que eram diferentes? Como já
era tarde, cantamos juntos outras canções em torno à fogueira e, terminamos
entoando juntos – não estou mentindo - «Auld Lang Syne».
Depois, nos separamos com a
promessa de reencontrar-nos no
outro dia e, talvez organizar uma partida de futebol. E enfim, minha irmã, já
houve uma vigília de Natal com esta na história? Pelos combates aqui,
naturalmente, significa pouco infelizmente. Estes soldados são simpáticos, mas
cumprem ordens e nós fazemos o mesmo. Além disso, estamos aqui para parar o
exército deles e fazê-los voltar para casa e, não desistiremos desta missão.
Ainda assim, não se pode não pensar o que aconteceria se o espírito que se
revelou aqui fosse assumido pelas nações do mundo. Obviamente, conflitos devem
sempre surgir. Mas o que aconteceria se os nossos governantes trocassem votos
de felicidade ao invés de ultimatos? Canções ao invés de insultos? Dons ao
invés de represálias? Não acabariam todas as guerras?
Teu caro irmão, Tom”.
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