O que está acontecendo não é
somente uma emergência sanitária, mas um evento que envolve muitos aspectos da
vida pessoal e social, que chamamos em causa a Doutrina social da Igreja. Eis
algumas reflexões sobre a emergência em ato, e, sobretudo sobre o
pós-coronavírus, feitas pelo arcebispo Giampaolo Crepaldi, feitas exatamente
pelo Observatório internacional Cardeal Van Thuân para a doutrina social da
Igreja.
NADA SERÁ COMO ANTES
A epidemia conexa com a difusão
do “COVID-19” possui um forte
impacto sobre muitos aspectos da convivência entre os homens e por isto requer
também uma análise do ponto de vista da Doutrina social da Igreja. A
contaminação é antes de tudo um evento de tipo sanitário e já isto coliga
diretamente com a finalidade do bem comum. A saúde faz parte certamente deste.
Ao mesmo tempo põe o problema da relação entre o homem e a natureza
e nos convida a superar o naturalismo hoje muito difuso e esqueço que, sem o
governo do homem, a natureza produz também desastres e que uma natureza sozinha
boa e originariamente sem contaminação não existe. Depois, põe o problema da
participação no bem comum e da solidariedade, convidando a enfrentar em base ao
princípio de subsidiariedade as diferentes contribuições que os sujeitos políticos
e sociais podem dar à solução deste grave problema e à reconstrução da
normalidade quando tiver passado. Emergiu com evidência que tais contribuições
devem ser articuladas, convergentes e coordenadas. O financiamento da saúde,
problema que o coronavírus faz emergir com grande evidência, é um problema
moral central na busca do bem comum.
São urgentes reflexões, seja sobre a finalidade do sistema de saúde,
seja sobre sua gestão e sobre a utilização dos recursos, dado que um confronto
com o recente passado faz registrar uma notável redução do financiamento para
as estruturas de saúde. Conexas com o problema da saúde existem ainda as
questões da economia e da paz social, dado que a epidemia coloca em perigo a
funcionalidade das fileiras produtivas e econômicas e o seu bloco, se
continuado no tempo, produzirá falências, desempregos, pobreza, sofrimento e
conflito social.
O mundo do trabalho será sujeito a fortes variações, serão
necessárias novas formas de sustento e solidariedade e será preciso fazer
escolhas drásticas. A questão econômica remete à do crédito e à monetária e,
portanto, às relações da Itália com a União Européia da qual dependem no nosso
país as decisões últimas nestes dois setores. Isso, por sua vez, repropõe a
questão da soberania nacional e da globalização, fazendo emergir a necessidade
de rever a globalização compreendida como uma máquina sistêmica globalista, a
qual pode também ser muito vulnerável exatamente pelo motivo da sua rígida e
artificial inter-relação interna pela qual, atingido um ponto nevrálgico, são
produzidos danos sistêmicos totais e dificilmente recuperáveis. Destituídos de
soberania os níveis sociais inferiores, todos serão atingidos por isso. Por
outro lado, o coronavírus colocou também em evidência os “fechamentos” dos Estados, incapazes de colaborar verdadeiramente mesmo
se membros de instituições supranacionais de pertença. Enfim, a epidemia
colocou o problema da relação do bem comum com a religião católica e o da
relação entre Estado e Igreja. A suspensão das missas e o fechamento das
igrejas são somente alguns aspectos deste problema.
Assim nos parece ser o quadro
complexo dos problemas investidos pela epidemia do coronavírus. Trata-se de
argumentos que interpelam a Doutrina social da Igreja pela qual o nosso
Observatório se sente chamado a oferecer uma reflexão, solicitando outras
contribuições nesta direção. A encíclica Caritas
in veritate de Bento XVI, escrita em 2009 no tempo de outra crise, afirmava
que “A crise nos obriga a reprojetar o nosso caminho, a
dar-nos novas regras e a encontrar novas formas de compromisso, a focar nas
experiências positivas e a rejeitar as negativas. A crise se torna assim
ocasião de discernimento e de novo planejamento” (n.
21).
O FIM DO NATUALISMO IDEOLÓGICO
As sociedades eram e são
atravessadas por várias formas ideológicas de naturalismo que a experiência
desta epidemia poderia corrigir. A exaltação de uma natureza pura e
originariamente sem contaminação em relação à qual o homem seria um poluidor
não tinha e, com maior razão, não possui agora. A idéia de uma Mãe Terra dotada
originariamente de um seu equilíbrio harmônico com cujo espírito o homem
deveria se conectar para reencontrar a justa relação com as coisas e consigo
mesmo é uma loucura que esta experiência poderia dissolver. A natureza deve ser
governada pelo homem e as novas ideologias panteístas (e não somente)
pós-modernas são ideologias desumanas. A natureza, no sentido naturalístico do
termo, produz também desequilíbrios e doenças e por isto deve ser humanizada.
Não é o homem a ter que naturalizar-se, mas a natureza é que deve ser
humanizada.
A revelação nos ensina que a criação foi confiada ao cuidado e ao
governo do homem em vista do fim último que é Deus. O homem possui o
direito, porque possui o dever, de gerenciar a criação material, governando-a e
retirando dela o quanto necessário e útil para o bem comum. A criação é
confiada por Deus ao homem, à sua intervenção segundo a razão e a sua
capacidade de domínio sapiente. É o homem o regulador da criação, não o
contrário.
OS DOIS SIGNIFICADOS DO TERMO “SALUS”
O termo “Salus” significa saúde,
no sentido sanitário do termo, e significa também salvação, no sentido ético-espiritual e, sobretudo religioso. A
atual experiência do coronavírus testemunha ainda mais uma vez que os dois
significados são interconectados. As ameaças à saúde do corpo induzem mudanças
nas atitudes, no modo de pensar, nos valores a procurar. Elas colocam à prova o
sistema moral de referência de toda a sociedade. Exigem comportamentos
eticamente válidos, denunciam atitudes egoístas, desinteressados, indiferentes,
de exploração. Evidenciam formas de heroísmo na luta comum à contaminação e, ao
mesmo tempo, formas de exploração de quem aproveita da situação.
A luta contra a contaminação requer uma recompactação moral da
sociedade em ordem a comportamentos sadios, solidários, respeitosos, talvez
mais importantes que a recompactação dos recursos. O desafio à saúde física se
coloca, portanto em relação com o desafio da saúde moral. Serve para isso um
profundo repensar dos desvios imorais da nossa sociedade, em todos os níveis.
Frequentemente as desgraças naturais não são totalmente naturais, mas possuem
por detrás atitudes moralmente desordenadas do homem. Não é ainda
definitivamente esclarecida a origem da “COVID-19” e também ela poderia demonstrar-se não de origem natural.
Mas também admitida a sua origem puramente natural, o seu impacto social chama
em causa a ética comunitária. A resposta não é e não será somente
científico-técnica, mas deverá ser também moral. Depois da técnica, a grave
contingência do coronavírus deveria fazer reviver sobre novas sólidas bases a
moral pública.
A PARTICIPAÇÃO NO BEM COMUM
Será preciso uma participação
ética porque em causa está o bem comum. A epidemia do coronavírus contradiz
todos aqueles que sustentaram que o bem comum como fim moral não existe. Se
assim fosse, por que coisa se esforçariam todas as pessoas que, dentro e fora
das instituições, procuram fazer alguma coisa e lutam? A qual compromisso
seriam chamados os cidadãos com as determinações restritivas se não a um
compromisso moral em vista do bem comum? Sobre qual base se diz que alguns
comportamentos neste momento são “devidos”? Quem negava a existência do bem comum ou quem confiava a
sua busca somente a técnicas, mas não ao esforço moral para o bem, hoje é
contradito pelos fatos. É o bem comum a dizer-nos que o da saúde é um bem que
todos devemos promover. É o bem comum a dizer-nos que a palavra Salus possui dois significados.
Esta experiência do coronavírus irá ao ponto de aprofundar e
alargar este conceito do bem comum? Enquanto se luta para salvar a vida de
tantas pessoas, as intervenções de aborto provocado não cessam, nem cessam a
venda de pílulas abortivas, nem cessam as práticas de eutanásia, nem cessam os
sacrifícios de embriões humanos e tantas outras práticas contra a vida e a
família. Sendo redescoberto o bem comum e a necessidade de uma harmoniosa participação
em seu favor no campo da luta à epidemia, se deveria ter a coragem intelectual
e a vontade de estender o conceito até onde naturalmente deve ser estendido.
A SUBSIDIARIEDADE NA LUTA PELA SAÚDE
A mobilização em ato contra a difusão do coronavírus viu a participação
de muitos níveis às vezes coordenados às vezes não. Existem papéis diferentes
que cada um desenvolveu segundo a sua responsabilidade. Uma vez superada a
tempestade isto permitirá rever algo que na fileira subsidiária não tenha
funcionado devidamente e de redescobrir o princípio importante da subsidiariedade
para aplicá-lo melhor e aplicá-lo em cada campo em que ele pode ser aplicado.
Uma experiência em modo particular deve ser valorizada: a subsidiariedade deve
ser “para” e não como defesa “da”: deve ser para o bem comum e,
portanto, deve ter um fundamento ético e não somente político ou
funcionalístico. Um fundamento ético fundado sobre a ordem natural e finalístico
da vida social. A ocasião é propícia para abonar as visões convencionais dos
valores e dos fins sociais.
Um ponto importante colocado
agora em evidência pela emergência coronavírus é o papel subsidiário do crédito. O bloco de amplos setores da economia
para garantir maior segurança sanitária e diminuir a difusão do vírus colocam
em crise econômica, sobretudo de liquidez, as empresas e as famílias. Se a
crise tivesse que durar por muito tempo se prevê uma crise da circularidade de
produção e consumo, com o fantasma do desemprego. Diante destas necessidades o
papel do crédito pode ser fundamental e o sistema financeiro poderia resgatar-se
de tantas e reprováveis dilapidações interessadas do recente passado.
SOBERANIA E GLOBALIZAÇÃO
A experiência em ato do coronavírus impõe que seja reconsiderado também
os dois conceitos de globalização e de soberania nacional. Existe uma
globalização que entende o inteiro planeta como um “sistema” de rígidas conexões e articulações, uma construção
artificial governada por especialistas, uma série de vasos comunicantes
aparentemente inabaláveis. Uma semelhante concepção se revelou porém também
frágil porque basta atingir o sistema em um ponto e se cria um efeito dominó
avalanche. A epidemia pode colocar em crise o sistema de saúde, as quarentenas
colocam em crise o sistema produtivo, este faz cair o sistema econômico,
pobreza e desemprego não alimentam mais o sistema de crédito, o enfraquecimento
da população a expõe a novas epidemias e assim por diante em uma série de
círculos viciosos com extensão planetária.
A globalização apresentava até
ontem os seus esplendores e as suas glórias de perfeito funcionamento técnico-funcional, de indiscutível arrogância
sobre a obsolescência de Estados e nações, de absoluto valor da “sociedade aberta”: um único mundo,
uma única religião, uma única moral universal, um único povo mundialista, uma
única autoridade mundial. Porém, depois pode bastar um vírus para fazer desabar
o sistema, dado que os níveis não globais das respostas foram desabilitados. A
experiência que estamos vivendo nos coloca em atenção em relação a uma “sociedade aberta” entendida neste
modo, seja porque ela se coloca nas mãos do poder de poucos, seja porque outras
mãos poderiam fazê-la cair rapidamente como um castelo de cartas. Isso não
significa negar a importância da colaboração internacional que exatamente
requerem, mas semelhante colaboração não tem nada a ver com estruturas
coletivas, mecânicas, automáticas e globalmente sistêmicas.
A MORTE DA UNIÃO EUROPÉIA POR CORONAVÍRUS
A experiência destes dias mostrou
uma União Européia mais uma vez dividida e fantasmagórica. Entre os Estados
membros apareceram mais disputas egoístas que colaboração. A Itália ficou
isolada e abandonada. A Comissão européia interveio tarde e o Banco Central
Europeu interveio mal. Diante da epidemia cada Estado procurou de fechar-se em
si mesmo. Os recursos necessários à Itália para enfrentar a situação
emergencial, que em outros tempos seriam encontrados por ela mesmo, por
exemplo, com a desvalorização da moeda, agora dependem das decisões da União a
qual se deve prostrar.
O coronavírus definitivamente mostrou a artificialidade da União
Européia que não consegue fazer com que os Estados colaborem entre si aos
quais se sobrepôs por aquisição de soberania. A falta de algo que unisse moralmente
não foi compensada pelo substituto institucional e político. É preciso dar-se
conta deste inglorioso fim pelo coronavírus da União Européia e pensar que uma
colaboração entre os Estados europeus na luta pela saúde é possível também fora
de instituições políticas supranacionais.
O ESTADO E A IGREJA
A palavra Salus significa, como
vimos, também a salvação e não somente saúde. A saúde não é a salvação, como
nos ensinaram os mártires, mas em certo sentido a salvação dá também a saúde. O
bom funcionamento da vida social, com os seus benéficos efeitos também sobre a
saúde, possui também necessidade da salvação prometida pela religião: “o homem não se desenvolve somente com suas forças” (Caritas in
veritatis, 11).
O bem comum é de natureza
moral e, como dissemos acima, esta
crise deveria induzir à redescoberta desta dimensão, mas a moral não vive de
vida própria, dado que é incapaz de fundamentar-se ultimamente. Aqui se coloca
o problema da relação essencial que a vida política possui com a religião,
aquela que melhor garante também a verdade da vida política. A autoridade
política enfraquece a luta contra o mal, como acontece também com a epidemia em
curso, quando equipara as Santas Missas com as iniciativas lúdicas, pensando
que devam ser suspensas, talvez ainda antes de suspender outras formas
agregadoras sem dúvida menos importantes. Também a Igreja pode errar quando não
faz valer, pelo mesmo autêntico e completo bem comum, a exigência pública das
Santas Missas e da abertura das Igrejas. A Igreja oferece a sua contribuição à
luta contra a epidemia nas várias formas de assistência, ajuda e solidariedade
que ela sabe realizar, como sempre fez em casos semelhantes no passado. É o
caso, porém, de manter alta a atenção à dimensão religiosa de sua contribuição,
para que não seja considerada uma simples expressão da sociedade civil. Por
isto assume um valor particular o que foi afirmado pelo Papa Francisco que
suplicou ao Espírito Santo de dar “aos pastores a
capacidade e o discernimento pastoral para que apresentem medidas que não
deixem sozinho o santo povo fiel de Deus. Que o povo de Deus se sinta
acompanhado pelos pastores e pelo conforto da Palavra de Deus, dos sacramentos
e da oração”, naturalmente com o bom senso e a
prudência que a situação exige.
Esta emergência do coronavírus
pode ser vivida por todos “como se Deus não existisse” e neste
caso também a fase sucessiva, quando a emergência terminará, aplicará em
continuação uma semelhante visão das coisas. Neste modo, porém, terá sido
esquecido o nexo entre saúde física e saúde moral e religiosa que esta dolorosa
emergência fez surgir. Se, pelo contrário, se sentir a exigência de tornar a
reconhecer o lugar de Deus no mundo, então também, as relações entre a política
e a religião católica e entre Estado e Igreja poderão tomar uma estrada
correta.
A emergência da epidemia em
ato interpela profundamente a
Doutrina social da Igreja. Esta é um patrimônio de fé e de razão que neste
momento pode dar uma grande ajuda na luta contra a contaminação, luta que deve
referir-se a todas as áreas da vida social e política. Sobretudo pode dar uma
ajuda em vista do pós-coronavírus. Serve também um olhar de conjunto, que não
deixe fora nenhuma perspectiva verdadeiramente importante. A vida social requer
coerência e síntese, sobretudo nas dificuldades, e é por isto que nas
dificuldades os homens que sabem olhar em profundidade e em alto podem
encontrar as soluções e, até mesmo, as ocasiões para melhorar as coisas em
relação ao passado.