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quarta-feira, 27 de maio de 2020

Coronavírus hoje e amanhã: o que nos ensina, de qual ponto recomeçar



O que está acontecendo não é somente uma emergência sanitária, mas um evento que envolve muitos aspectos da vida pessoal e social, que chamamos em causa a Doutrina social da Igreja. Eis algumas reflexões sobre a emergência em ato, e, sobretudo sobre o pós-coronavírus, feitas pelo arcebispo Giampaolo Crepaldi, feitas exatamente pelo Observatório internacional Cardeal Van Thuân para a doutrina social da Igreja.






NADA SERÁ COMO ANTES

A epidemia conexa com a difusão do COVID-19 possui um forte impacto sobre muitos aspectos da convivência entre os homens e por isto requer também uma análise do ponto de vista da Doutrina social da Igreja. A contaminação é antes de tudo um evento de tipo sanitário e já isto coliga diretamente com a finalidade do bem comum. A saúde faz parte certamente deste.

Ao mesmo tempo põe o problema da relação entre o homem e a natureza e nos convida a superar o naturalismo hoje muito difuso e esqueço que, sem o governo do homem, a natureza produz também desastres e que uma natureza sozinha boa e originariamente sem contaminação não existe. Depois, põe o problema da participação no bem comum e da solidariedade, convidando a enfrentar em base ao princípio de subsidiariedade as diferentes contribuições que os sujeitos políticos e sociais podem dar à solução deste grave problema e à reconstrução da normalidade quando tiver passado. Emergiu com evidência que tais contribuições devem ser articuladas, convergentes e coordenadas. O financiamento da saúde, problema que o coronavírus faz emergir com grande evidência, é um problema moral central na busca do bem comum. 

São urgentes reflexões, seja sobre a finalidade do sistema de saúde, seja sobre sua gestão e sobre a utilização dos recursos, dado que um confronto com o recente passado faz registrar uma notável redução do financiamento para as estruturas de saúde. Conexas com o problema da saúde existem ainda as questões da economia e da paz social, dado que a epidemia coloca em perigo a funcionalidade das fileiras produtivas e econômicas e o seu bloco, se continuado no tempo, produzirá falências, desempregos, pobreza, sofrimento e conflito social.

O mundo do trabalho será sujeito a fortes variações, serão necessárias novas formas de sustento e solidariedade e será preciso fazer escolhas drásticas. A questão econômica remete à do crédito e à monetária e, portanto, às relações da Itália com a União Européia da qual dependem no nosso país as decisões últimas nestes dois setores. Isso, por sua vez, repropõe a questão da soberania nacional e da globalização, fazendo emergir a necessidade de rever a globalização compreendida como uma máquina sistêmica globalista, a qual pode também ser muito vulnerável exatamente pelo motivo da sua rígida e artificial inter-relação interna pela qual, atingido um ponto nevrálgico, são produzidos danos sistêmicos totais e dificilmente recuperáveis. Destituídos de soberania os níveis sociais inferiores, todos serão atingidos por isso. Por outro lado, o coronavírus colocou também em evidência os fechamentos dos Estados, incapazes de colaborar verdadeiramente mesmo se membros de instituições supranacionais de pertença. Enfim, a epidemia colocou o problema da relação do bem comum com a religião católica e o da relação entre Estado e Igreja. A suspensão das missas e o fechamento das igrejas são somente alguns aspectos deste problema.

Assim nos parece ser o quadro complexo dos problemas investidos pela epidemia do coronavírus. Trata-se de argumentos que interpelam a Doutrina social da Igreja pela qual o nosso Observatório se sente chamado a oferecer uma reflexão, solicitando outras contribuições nesta direção. A encíclica Caritas in veritate de Bento XVI, escrita em 2009 no tempo de outra crise, afirmava que A crise nos obriga a reprojetar o nosso caminho, a dar-nos novas regras e a encontrar novas formas de compromisso, a focar nas experiências positivas e a rejeitar as negativas. A crise se torna assim ocasião de discernimento e de novo planejamento (n. 21).

O FIM DO NATUALISMO IDEOLÓGICO

As sociedades eram e são atravessadas por várias formas ideológicas de naturalismo que a experiência desta epidemia poderia corrigir. A exaltação de uma natureza pura e originariamente sem contaminação em relação à qual o homem seria um poluidor não tinha e, com maior razão, não possui agora. A idéia de uma Mãe Terra dotada originariamente de um seu equilíbrio harmônico com cujo espírito o homem deveria se conectar para reencontrar a justa relação com as coisas e consigo mesmo é uma loucura que esta experiência poderia dissolver. A natureza deve ser governada pelo homem e as novas ideologias panteístas (e não somente) pós-modernas são ideologias desumanas. A natureza, no sentido naturalístico do termo, produz também desequilíbrios e doenças e por isto deve ser humanizada. Não é o homem a ter que naturalizar-se, mas a natureza é que deve ser humanizada.

A revelação nos ensina que a criação foi confiada ao cuidado e ao governo do homem em vista do fim último que é Deus. O homem possui o direito, porque possui o dever, de gerenciar a criação material, governando-a e retirando dela o quanto necessário e útil para o bem comum. A criação é confiada por Deus ao homem, à sua intervenção segundo a razão e a sua capacidade de domínio sapiente. É o homem o regulador da criação, não o contrário.

OS DOIS SIGNIFICADOS DO TERMO SALUS

O termo Salus significa saúde, no sentido sanitário do termo, e significa também salvação, no sentido ético-espiritual e, sobretudo religioso. A atual experiência do coronavírus testemunha ainda mais uma vez que os dois significados são interconectados. As ameaças à saúde do corpo induzem mudanças nas atitudes, no modo de pensar, nos valores a procurar. Elas colocam à prova o sistema moral de referência de toda a sociedade. Exigem comportamentos eticamente válidos, denunciam atitudes egoístas, desinteressados, indiferentes, de exploração. Evidenciam formas de heroísmo na luta comum à contaminação e, ao mesmo tempo, formas de exploração de quem aproveita da situação.

A luta contra a contaminação requer uma recompactação moral da sociedade em ordem a comportamentos sadios, solidários, respeitosos, talvez mais importantes que a recompactação dos recursos. O desafio à saúde física se coloca, portanto em relação com o desafio da saúde moral. Serve para isso um profundo repensar dos desvios imorais da nossa sociedade, em todos os níveis. Frequentemente as desgraças naturais não são totalmente naturais, mas possuem por detrás atitudes moralmente desordenadas do homem. Não é ainda definitivamente esclarecida a origem da COVID-19 e também ela poderia demonstrar-se não de origem natural. Mas também admitida a sua origem puramente natural, o seu impacto social chama em causa a ética comunitária. A resposta não é e não será somente científico-técnica, mas deverá ser também moral. Depois da técnica, a grave contingência do coronavírus deveria fazer reviver sobre novas sólidas bases a moral pública.

A PARTICIPAÇÃO NO BEM COMUM

Será preciso uma participação ética porque em causa está o bem comum. A epidemia do coronavírus contradiz todos aqueles que sustentaram que o bem comum como fim moral não existe. Se assim fosse, por que coisa se esforçariam todas as pessoas que, dentro e fora das instituições, procuram fazer alguma coisa e lutam? A qual compromisso seriam chamados os cidadãos com as determinações restritivas se não a um compromisso moral em vista do bem comum? Sobre qual base se diz que alguns comportamentos neste momento são devidos? Quem negava a existência do bem comum ou quem confiava a sua busca somente a técnicas, mas não ao esforço moral para o bem, hoje é contradito pelos fatos. É o bem comum a dizer-nos que o da saúde é um bem que todos devemos promover. É o bem comum a dizer-nos que a palavra Salus possui dois significados.

Esta experiência do coronavírus irá ao ponto de aprofundar e alargar este conceito do bem comum? Enquanto se luta para salvar a vida de tantas pessoas, as intervenções de aborto provocado não cessam, nem cessam a venda de pílulas abortivas, nem cessam as práticas de eutanásia, nem cessam os sacrifícios de embriões humanos e tantas outras práticas contra a vida e a família. Sendo redescoberto o bem comum e a necessidade de uma harmoniosa participação em seu favor no campo da luta à epidemia, se deveria ter a coragem intelectual e a vontade de estender o conceito até onde naturalmente deve ser estendido.

A SUBSIDIARIEDADE NA LUTA PELA SAÚDE

A mobilização em ato contra a difusão do coronavírus viu a participação de muitos níveis às vezes coordenados às vezes não. Existem papéis diferentes que cada um desenvolveu segundo a sua responsabilidade. Uma vez superada a tempestade isto permitirá rever algo que na fileira subsidiária não tenha funcionado devidamente e de redescobrir o princípio importante da subsidiariedade para aplicá-lo melhor e aplicá-lo em cada campo em que ele pode ser aplicado. Uma experiência em modo particular deve ser valorizada: a subsidiariedade deve ser para e não como defesa da: deve ser para o bem comum e, portanto, deve ter um fundamento ético e não somente político ou funcionalístico. Um fundamento ético fundado sobre a ordem natural e finalístico da vida social. A ocasião é propícia para abonar as visões convencionais dos valores e dos fins sociais.

Um ponto importante colocado agora em evidência pela emergência coronavírus é o papel subsidiário do crédito. O bloco de amplos setores da economia para garantir maior segurança sanitária e diminuir a difusão do vírus colocam em crise econômica, sobretudo de liquidez, as empresas e as famílias. Se a crise tivesse que durar por muito tempo se prevê uma crise da circularidade de produção e consumo, com o fantasma do desemprego. Diante destas necessidades o papel do crédito pode ser fundamental e o sistema financeiro poderia resgatar-se de tantas e reprováveis dilapidações interessadas do recente passado.

SOBERANIA E GLOBALIZAÇÃO

A experiência em ato do coronavírus impõe que seja reconsiderado também os dois conceitos de globalização e de soberania nacional. Existe uma globalização que entende o inteiro planeta como um sistema de rígidas conexões e articulações, uma construção artificial governada por especialistas, uma série de vasos comunicantes aparentemente inabaláveis. Uma semelhante concepção se revelou porém também frágil porque basta atingir o sistema em um ponto e se cria um efeito dominó avalanche. A epidemia pode colocar em crise o sistema de saúde, as quarentenas colocam em crise o sistema produtivo, este faz cair o sistema econômico, pobreza e desemprego não alimentam mais o sistema de crédito, o enfraquecimento da população a expõe a novas epidemias e assim por diante em uma série de círculos viciosos com extensão planetária.

A globalização apresentava até ontem os seus esplendores e as suas glórias de perfeito funcionamento técnico-funcional, de indiscutível arrogância sobre a obsolescência de Estados e nações, de absoluto valor da sociedade aberta: um único mundo, uma única religião, uma única moral universal, um único povo mundialista, uma única autoridade mundial. Porém, depois pode bastar um vírus para fazer desabar o sistema, dado que os níveis não globais das respostas foram desabilitados. A experiência que estamos vivendo nos coloca em atenção em relação a uma sociedade aberta entendida neste modo, seja porque ela se coloca nas mãos do poder de poucos, seja porque outras mãos poderiam fazê-la cair rapidamente como um castelo de cartas. Isso não significa negar a importância da colaboração internacional que exatamente requerem, mas semelhante colaboração não tem nada a ver com estruturas coletivas, mecânicas, automáticas e globalmente sistêmicas.

A MORTE DA UNIÃO EUROPÉIA POR CORONAVÍRUS

A experiência destes dias mostrou uma União Européia mais uma vez dividida e fantasmagórica. Entre os Estados membros apareceram mais disputas egoístas que colaboração. A Itália ficou isolada e abandonada. A Comissão européia interveio tarde e o Banco Central Europeu interveio mal. Diante da epidemia cada Estado procurou de fechar-se em si mesmo. Os recursos necessários à Itália para enfrentar a situação emergencial, que em outros tempos seriam encontrados por ela mesmo, por exemplo, com a desvalorização da moeda, agora dependem das decisões da União a qual se deve prostrar.

O coronavírus definitivamente mostrou a artificialidade da União Européia que não consegue fazer com que os Estados colaborem entre si aos quais se sobrepôs por aquisição de soberania. A falta de algo que unisse moralmente não foi compensada pelo substituto institucional e político. É preciso dar-se conta deste inglorioso fim pelo coronavírus da União Européia e pensar que uma colaboração entre os Estados europeus na luta pela saúde é possível também fora de instituições políticas supranacionais.

O ESTADO E A IGREJA

A palavra Salus significa, como vimos, também a salvação e não somente saúde. A saúde não é a salvação, como nos ensinaram os mártires, mas em certo sentido a salvação dá também a saúde. O bom funcionamento da vida social, com os seus benéficos efeitos também sobre a saúde, possui também necessidade da salvação prometida pela religião: o homem não se desenvolve somente com suas forças (Caritas in veritatis, 11).

O bem comum é de natureza moral e, como dissemos acima, esta crise deveria induzir à redescoberta desta dimensão, mas a moral não vive de vida própria, dado que é incapaz de fundamentar-se ultimamente. Aqui se coloca o problema da relação essencial que a vida política possui com a religião, aquela que melhor garante também a verdade da vida política. A autoridade política enfraquece a luta contra o mal, como acontece também com a epidemia em curso, quando equipara as Santas Missas com as iniciativas lúdicas, pensando que devam ser suspensas, talvez ainda antes de suspender outras formas agregadoras sem dúvida menos importantes. Também a Igreja pode errar quando não faz valer, pelo mesmo autêntico e completo bem comum, a exigência pública das Santas Missas e da abertura das Igrejas. A Igreja oferece a sua contribuição à luta contra a epidemia nas várias formas de assistência, ajuda e solidariedade que ela sabe realizar, como sempre fez em casos semelhantes no passado. É o caso, porém, de manter alta a atenção à dimensão religiosa de sua contribuição, para que não seja considerada uma simples expressão da sociedade civil. Por isto assume um valor particular o que foi afirmado pelo Papa Francisco que suplicou ao Espírito Santo de dar aos pastores a capacidade e o discernimento pastoral para que apresentem medidas que não deixem sozinho o santo povo fiel de Deus. Que o povo de Deus se sinta acompanhado pelos pastores e pelo conforto da Palavra de Deus, dos sacramentos e da oração, naturalmente com o bom senso e a prudência que a situação exige.

Esta emergência do coronavírus pode ser vivida por todos como se Deus não existisse e neste caso também a fase sucessiva, quando a emergência terminará, aplicará em continuação uma semelhante visão das coisas. Neste modo, porém, terá sido esquecido o nexo entre saúde física e saúde moral e religiosa que esta dolorosa emergência fez surgir. Se, pelo contrário, se sentir a exigência de tornar a reconhecer o lugar de Deus no mundo, então também, as relações entre a política e a religião católica e entre Estado e Igreja poderão tomar uma estrada correta.

A emergência da epidemia em ato interpela profundamente a Doutrina social da Igreja. Esta é um patrimônio de fé e de razão que neste momento pode dar uma grande ajuda na luta contra a contaminação, luta que deve referir-se a todas as áreas da vida social e política. Sobretudo pode dar uma ajuda em vista do pós-coronavírus. Serve também um olhar de conjunto, que não deixe fora nenhuma perspectiva verdadeiramente importante. A vida social requer coerência e síntese, sobretudo nas dificuldades, e é por isto que nas dificuldades os homens que sabem olhar em profundidade e em alto podem encontrar as soluções e, até mesmo, as ocasiões para melhorar as coisas em relação ao passado.


quinta-feira, 7 de maio de 2020

Criação e PANDEMIA: O coronavirus e a mudança de teologia sobre a criação

Stefano Fontana

A Igreja teve certa dificuldade para ler o evento da pandemia em chave estritamente teológica.  A teologia contemporânea substituiu a concepção tradicional da criação de Deus que criou as coisas do nada e de um tudo que é misteriosamente ordenado para o fim da salvação. Esta não aceita mais esta visão da criação, mas sobre a linha traçada pelo jesuíta padre Teilhard de Chardin para o qual não é mais a criação a derivar de Deus, mas Deus da evolução do cosmo. Assumindo esta impostação se torna impossível referir uma pandemia a Deus criador.




É surpreendente o quanto consiga fazer um micro-organismo como o covid-19: pode até mesmo submeter à prova a visão cristã da criação, ou melhor, colocar em confronto duas concepções teológicas da criação, aquela de sempre e aquela da teologia contemporânea de ponta.

Muitos notaram que a Igreja teve certa dificuldade para ler o evento da pandemia em chave estritamente teológica, dentro da história da salvação e na ótica da salus animarum. Não faltaram as orações de ajuda ao Céu, os devotos pedidos de intercessão Mariana, mas jamais como pedido de ajuda na provação que como ocasião de revisão de vida, seja pessoal, seja comunitária. Em outros termos, a epidemia foi considerada principalmente somente como um fato natural e se pediu ao Céu a ajuda para enfrentar o desastre natural.

A concepção tradicional de criação era aproximadamente a  mesma: Deus criou as coisas do nada, portanto Ele é a Causa primeira e o Fim último. Consequentemente tudo é por Ele desejado e permitido para um bem maior. O bem maior último é a salvação eterna das almas, portanto tudo é misteriosamente ordenado a este fim. Nenhum evento é, portanto somente natural, exatamente porque a natureza não é uma entidade autônoma em relação a Deus, mas também os eventos naturais têm a ver, direta ou indiretamente, com a salvação.

Eles devem, portanto ser colocados em relação com o pecado dos homens, seja com a situação decaída depois do pecado das origens, seja com os pecados atuais. Não com os pecados contra a natureza (os eco-pecados), mas os pecados contra Deus. É, então, lícito, e antes obrigação, que a Igreja guie também para uma reflexão deste tipo e relacione os perigos que vêm da natureza ao desígnio providencial de Deus para a nossa salvação. Estes, portanto podem e devem ser interpretados também como convite à conversão e à purificação espiritual.

A teologia contemporânea, porém não aceita mais esta visão da criação. Sobre a linha traçada pelo jesuíta padre Teilhard de Chardin, existe um movimento de evolução do imperfeito ao mais perfeito e Cristo é o Ponto Ômega desta evolução. Para Santo Tomás era certo que o mundo não fosse eterno, exatamente porque foi criado do nada, mesmo se não era demonstrável segundo ele um seu início. 

Agora, ao invés, o mundo é um processo tendente sempre ao melhor cujo vértice é Cristo. Poderia se dizer que não é mais a criação a derivar de Deus, mas Deus da evolução do cosmo. Um princípio fundamental da metafísica cristã era que o mais não vem do menos.

Na nova visão, ao invés, o mais pode vir do menos, porque a matéria pode produzir a forma. A matéria, como sustentado por muitos – pensemos, por exemplo, em Ernst Bloch – não é somente matéria mas possui uma dinamicidade interna que a permite de gerar as formas. Segundo Teilhard isso é evidente no homem: nele a matéria produz o espírito, se trata do famoso processo de hominização. O homem é um produto da evolução, não foi criado diretamente por Deus através do seu Sopro de vida, mas foi criado indiretamente de dentro do processo de criação-evolução. Por fim, a alma pode ter esta origem, não obstante Pio XII na Humani generis tenha confirmado a doutrina oposta.

O mesmo deve dizer-se – antes com maior razão – para a criação segundo Karl Rahner. Pensar em Deus que cria do nada em sentido metafísico – segundo ele – significa interpretar Deus segundo as categorias com as quais interpretamos as coisas deste mundo e comparar Deus a um artesão que cria a sua obra. Para usar as suas palavras, seria pensar em sentido categorial e não transcendental.

Deus opera somente através das causas segundas e não mediante uma intervenção direta, portanto cria de dentro da natureza e de dentro da história, em modo evolucionista. Nós não temos um sentido de dependência de Deus porque Deus nos criou, mas Deus nos criou porque amadurecemos evolucionisticamente um sentido de dependência de Deus. Todas as categorias teológicas, inclusive aquela da criação, amadurecem historicamente e evolutivamente. Até mesmo Jesus Cristo não sabia que era Deus, mas amadureceu tal convicção progressivamente.

Assumindo esta impostação se torna impossível referir uma pandemia a Deus criador, pelo menos por tê-la permitido, e, portanto o seu significado para nós pode ser somente natural e não transmitir uma mensagem sobrenatural, seria ainda mais uma vez transferir para o plano divino as nossas categorias mentais adaptadas ao invés a este mundo.

A única leitura cristã que se pode fazer se refere ao esforço natural no confronto de uma coisa natural, porque Deus se manifesta de modo evolucionista na natureza e na história, precisamente no seu significado natural histórico. Uma visão transcendente, do ponto de vista de Deus, ligada ao fim da salvação das almas seria não idônea e incompreensível para o homem contemporâneo que a acusaria de magia.