O desenvolvimento histórico-social do mundo possui
uma importância para a construção do Reino de Deus? Sobre esta pergunta o pensamento teológico
produziu duas escolas de pensamento delineadas no encarnacionismo e no
escatologismo. Mas, enquanto a segunda nos recorda que a Igreja conquista o
mundo difundindo nele o Evangelho e os Sacramentos, a primeira deu espaço à
teologia política de um mundo inclinado sobre si mesmo. A segunda parte da
lectio magistralis de Pe. Mauro Gagliardi na jornada da Doutrina social.
Prosseguimos com a leitura da lectio magistralis de
Pe. Mauro Gagliardi feita em 2 de fevereiro passado no teatro Guanella no
âmbito da jornada de Doutrina social promovida pela Nuova BQ e pelo
Osservatorio Van Thuan.
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Uma outra pergunta, relacionada com as anteriores,
é esta: o desenvolvimento histórico-social do mundo possui importância ou não em
relação à constituição da Jerusalém celeste? Ou seja: os
progressos históricos da humanidade preparam diretamente o advento do Reino de
Deus, ou são quase irrelevantes em relação à vinda do final dos tempos? Também
esta problemática foi enfrentada na teologia do século XX, em uma controvérsia entre duas posições
opostas: o encarnacionismo de autores
como G. Thils e D. Dubarle, e o escatologismo de outros como L. Bouyer e J. Daniélou.
O escatologismo é posição mais clássica e consiste
no dizer que existe uma nítida distinção entre o progresso humano e social e
vinda do Reino final de Deus. O progresso coligado com a vinda final do Senhor,
que virá um dia para julgar o mundo e para estabelecer novos céus e nova terra.
Existiria descontinuidade entre a história que nós vivemos e o início dos
últimos tempos. Os teólogos que sustentam esta tese dizem que no Novo
Testamento não se dá importância à história depois da vinda de Cristo; ou
melhor, os primeiros cristãos parecem desejar que a história humana terminasse
o mais rápido possível, de modo que possa começar o Reino definitivo de Cristo.
Isto se exprime na oração “Maranatha, Vem,
Senhor Jesus!”. Também o Credo, que
recitamos todos os domingos na Missa, salta diretamente da ressurreição e
ascensão ao Céu do Senhor, ao fato que Jesus virá no final “para julgar os
vivos e os mortos e o seu reino não terá fim”: portanto, na nossa profissão de
fé, a história intermédia não parece ser muito relevante. Ela é somente um
período de fastidiosa espera e não possui em si valor para o Reino de Deus.
Santo Agostinho é um dos Padres mais representativos desta corrente. Ele
sustenta – referindo-se a São Paulo – que a plenitude dos tempos já veio; por
isso, da história não devemos esperar nada de novo que tenha realmente
importância. Mas então, para que serve a história?
Para os escatologistas, a história é o tempo que Deus nos dá para que cada um
de nós, vivendo segundo o Evangelho, possa merecer a sua salvação; e é também o
tempo em que, através da nossa cooperação, o mundo, entendido, sobretudo do
ponto de vista moral, possa retornar para Deus através de Cristo. mas, neste
tempo intermédio entre a primeira e a segunda vinda de Cristo não se verifica –
segundo o escatologismo – um processo de purificação dinâmico e progressivo de
toda a sociedade: se trata sempre de indivíduos singulares, ou talvez também de
grupos e povos que se abrem à graça, e se salvam; ou talvez que se fecham a
ela, e se condenam. Neste tempo intermédio, a Igreja luta para ganhar almas
para Cristo.
No lado oposto estão os teólogos que escolhem o
modelo chamado encarnacionista. Segundo eles, a graça de Cristo opera neste
mundo e tende a realizar formas melhores de humanidade e sociabilidade, as
quais são prelúdio e depósito das perfeições futuras do Reino celeste de Deus.
A graça é aqui considerada como enriquecimento do mundo, que o orienta a novos objetivos.
A vinda do Reino de Deus coincidirá, segundo os encarnacionistas, com o
cumprimento do caminho perfeito da humanidade na história, de formas de sociabilidade
imperfeitas atrasadas, a formas evoluídas. Certo, também para estes teólogos, o
Reino virá por iniciativa de Deus, mas não sem liames com o desenvolvimento do
quanto é contingente. Como foi acenado, Teilhard entende isso, sobretudo em
sentido cósmico, entendendo a palavra “mundo” como cosmos, o conjunto da criação visível. Existem outros autores, ao
invés, que aplicaram este esquema ao mundo entendido como sociedade civil e
história. Entre estes, podemos citar o teólogo alemão Johannes Baptist Metz, o
qual sustenta que é a sociedade que deve ser modificada, para poder se tornar o
Reino de Deus. A salvação não é coisa privada e individual, ele diz, mas
“elemento crítico e libertador deste mundo social e do seu processo histórico” (Sul
concetto della nuova teologia politica, 1967-1997, Brescia 1998, p. 14 / Sobre o conceito da nova teologia
política...). Metz, discípulo de Rahner, é considerado o pai da teologia
política, a qual parece tender a tornar imanente e coletivo o conceito de
Reino.
Em síntese: para os escatologistas, a Igreja
conquista o mundo para Cristo, sobretudo difundindo o Evangelho, celebrando os
Sacramentos e realizando um ambiente humano e social que facilite uma vida
ordenada segundo os mandamentos. Para os encarnacionistas, ao invés, a obra da
Igreja para o mundo consistiria, sobretudo no favorecer o desenvolvimento
positivo do mundo enquanto tal. Ambos os grupos podem recorrer aos textos
evangélicos do fermento na massa ou do sal que dá sabor: para os escatologistas
são imagens de expansão do Reino sobrenatural na mistura natural; para os
encarnacionistas indica a cooperação de uma minoria que, no final das contas,
permanece tal, mas que trabalha junto aos outros componentes da massa.
Em base a tudo isto, nos perguntamos: este mundo é
bom ou é mau em si mesmo?
Ele deve ser deixado assim como é e até mesmo acompanhado na sua
mundanidade, ou deve ser modificado, transformado e até mesmo conquistado? E, nesta segunda hipótese, qual é o sentido, a finalidade de tal
transformação? A Igreja, ou seja, os batizados: o que devem fazer no confronto
com o mundo? Cristo deve reinar somente sobre as almas, ou também em seus
corpos sociais? Os católicos, especificamente os leigos, devem preocupar-se
somente de viver na graça de Deus a nível pessoal, ou devem trabalhar para
expandir o Reino de Cristo também visivelmente e socialmente? E enfim: a expressão
“Reino social de Cristo” significa o mesmo que “Reino político de Cristo”?
Trata-se obviamente de perguntas enormes, as quais
nós devemos procurar dar resposta em um tempo restrito. Para tentar uma empresa
assim árdua, dirijamo-nos – como sempre é preciso fazer – à mensagem da
Revelação, começando do que ela nos diz sobre o mundo.
Na Sagrada Escritura, o mundo é antes de tudo o
conjunto do céu e da terra (cf.: Gn 1,1), ou seja, de tudo isto que foi criado
por Deus, o cosmos. Neste sentido, o mundo é bom: Deus viu que tudo que tinha
feito era coisa muito boa (cf.: Gn 1,31); as criaturas são sadias e nelas não
existe veneno de morte, diz o Livro da Sabedoria
(cf.: 1,14). Mas, um pouco mais adiante, o Livro acrescenta que a morte entrou
no mundo por inveja do diabo (cf.: 2,24). O mundo, entendido como criação,
permanece ainda belo e ordenado, e enquanto tal é um sinal claro da existência
do Criador, mas ao mesmo tempo está ferido: nele foi inserido um veneno que o
corrói. Por isso, o mundo não é mais somente o maravilhoso habitat criado por Deus para a sua criatura terrestre preferida: o
homem. Agora o mundo é também motivo de sofrimento para o homem: o pecado
original induz Deus a pronunciar a seguinte sentença: “Maldita seja a terra por
tua causa. Tirarás dela com trabalhos penosos o teu sustento todos os dias de
tua vida. Ela te produzirá espinhos e abrolhos, e tu comerás a erva da terra. Comerás
o teu pão com o suor do teu rosto, até que voltes à terra de que foste tirado;
porque és pó, e pó te hás de tornar” (Gn 3,17-19).
A Escritura, porém, não condena definitivamente o
mundo. Nela se fala também de uma restauração do mundo: isto é feito com
diferentes imagens; sejam aquelas de uma restauração do paraíso terrestre, que
encontramos em alguns profetas do Antigo Testamento, sejam aquelas – chamadas
de apocalípticas – de uma destruição, de uma conflagração final de tudo, que
depois deveria dar espaço a um novo início, chamado às vezes de “novos céus e
nova terra” (cf.: Is 65,17; 66,22). Em qualquer modo se imagine esta
restauração final, existe um tempo intermédio entre o pecado original e o final
do mundo: a história. É neste tempo intermédio que se joga a relação
Igreja-mundo.
A via da fé
O Novo Testamento retoma do Antigo a ideia de
que o mundo foi criado por Deus e precisa que em particular todas as coisas
foram feitas por meio do Verbo (cf.: Jo 1,3), ou seja, a segunda Pessoa da
Trindade, que da encarnação em diante se chama Jesus de Nazaré, filho de Maria.
Jesus Cristo, homem e Deus, nos traz a salvação e a revelação definitivas. Na
revelação definitiva do Novo Testamento, reencontramos com ulterior precisão o
que já dissemos: o mundo saiu das mãos de Deus, mas está agora corrompido pela
inveja do diabo, que induziu o homem a pecar.
Por isso frequentemente a palavra “mundo” pode e
até mesmo deve ser usada negativamente. Por exemplo, São Paulo fala do espírito
deste mundo que não é capaz de compreender os segredos e os dons de Deus (cf.:
1Cor 2,12) ou da sabedoria do mundo que se gloria das suas especulações
racionalistas e por isso não é capaz de acolher a revelação de Deus (cf.: 1Cor
1,20). São João fala do Anticristo que está operando no mundo (cf.: 1Jo 4,3).
Quanto ao Senhor Jesus Cristo, também Ele nos avisou da corrupção do mundo,
dizendo: vos deixo a paz, mas a minha paz é diferente da paz do mundo (cf.: Jo
14,27). Desde o início, a vinda de Jesus entre nós foi obstaculizada pelo
mundo: o mundo não o reconheceu (cf.: Jo 1,10). Jesus diz de si mesmo: eu não
sou deste mundo (cf.: Jo 8,23; 17,14) e: o meu reino não é deste mundo (cf.: Jo
18,36). Na realidade, para Jesus, este mundo é muito mais o reino de Satanás; o
reconhece o próprio demônio quando coloca Jesus à prova no deserto
dizendo-lhes: “Dar-te-ei todo este poder e a glória desses reinos, porque me
foram dados, e dou-os a quem quero” (Lc 4,6). Por isso o mundo odeia Jesus (cf.: Jo 15,18),
mas o Senhor recorda que o príncipe deste mundo não possui nenhum poder sobre
ele (cf.: Jo 14,30).
Estando assim as coisas, nós podemos dizer: o mundo
está perdido; o mundo é todo e somente negatividade. Por isto, Jesus no
cenáculo disse que rezava ao Pai somente pelos seus discípulos, mas que não
tinha rezado pelo mundo (cf.: Jo 17,9). Porém, no Novo Testamento, encontramos
também outras expressões. A primeira é esta: “Deus tanto amou o mundo que
entregou o seu Filho unigênito” (Jo 3,16). Jesus depois disse: “Eu sou a luz do
mundo” (Jo 9, 5) e além do mais, ensina que o pão que desceu do céu, a Eucaristia,
“dá a vida ao mundo” (Jo 6,33. Cf.: 6,51). Ainda mais claramente, o Senhor diz:
“Não vim para condenar o mundo, para salvar o mundo” (Jo 12,47).
Como se vê, existem duas linhas de ensinamento, ambas
claras: o mundo é mau e está sob a condenação; mas Deus amou o mundo e por isso
enviou o Filho para salvá-lo. Esta salvação se cumpre antes de tudo com a
redenção, operada por Jesus com o seu sacrifício pessoal. Trata-se de uma
purificação do mundo do pecado, de uma restituição do estado de santidade original.
Neste sentido, Jesus mesmo condena o mundo, mesmo se o condena para
purificá-lo, para salvá-lo, para separar os cabritos das ovelhas, o trigo do
joio, a criação do pecado. A obra de Cristo é uma luta contra Satanás, que é
vencido: “Agora é o julgamento deste mundo; agora o príncipe deste mundo será
jogado fora” (Jo 12,31). Por isso, Jesus
nos exorta: “Tende coragem: eu venci o mundo!” (JO 16,33).
Esta situação se projeta de Jesus aos discípulos, a
nós. Os cristãos estão em relação ao mundo na mesma relação em que está Jesus,
o qual, falando ao Pai, disse de nós: “Dei-lhes a tua palavra, mas o mundo os
odeia, porque eles não são do mundo, como também eu não sou do mundo” (Jo 17,
14; cf.: 17,16). Agora nós vivemos ainda no mundo, no reino de Satanás e do
pecado, porém, não pertencemos ao mundo da corrupção: isto é o cristianismo.
São Tiago, por isso, diz que o cristão deve ter cuidado com a podridão do mundo
(cf.: Tg 1,27) porque a amizade com o mundo é inimizade com Deus (cf.: Tg 4,4);
São João diz que não devemos amar este mundo (1Jo 2,15); e São Paulo ensina que
não devemos conformar o nosso pensamento com o pensamento do mundo (cf.: Rm
12,2). Todavia, o próprio Novo Testamento nos recorda que, assim como Cristo,
nós temos uma verdade e um testemunho a dar ao mundo (cf.: Jo 17,18) e
exatamente estes poderão ajudar o mundo a purificar-se. Este é o mais alto ato
de amor que podemos fazer pelo mundo, que mesmo assim nos odeia, porque somos
de Cristo (cf.: Jo 15,18). O Novo Testamento diz que a arma invencível para
enfrentar o mundo é a nossa fé (Hb 11,7; 1Jo 5,4).
2 - Continua
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