Pesquisar no blog

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

A realeza social de Cristo e a Doutrina social da Igreja.



A revista “Il Timone”publicou no número de novembro de 2014 o artigo de Stefano Fontana intitulado “Sopra la democrazia c’è Dio” (Acima da docracia está Deus), pp.39-41, ao interno de um Dossier dedicado a “Cristo Rei!”.
O Princípio doutrinal da “realeza social de Cristo” significa que a construção da sociedade humana não consegue alcançar os próprios fins naturais sem ser ordenada a Jesus Cristo, Criador e Salvador. Ele, enquanto Criador, constituiu a sociedade humana fundando-a sobre o matrimônio e a família, sobre o amor recíproco e sobre a autoridade. Sempre como Criador, o Senhor deu à sociedade as regras da convivência, fixando em cada coisa os seus limites. Como Redentor, o Senhor Jesus recriou uma segunda vez o mundo depois do pecado e no final recapitulará em Si todas as coisas, tanto as do céu como as da terra. Jesus Cristo possui um senhorio absoluto sobre a história e sobre o mundo, porque é o Alfa e o Ômega. Além disso, como escreveu Joseph Ratzinger: “Um Deus que não possui poder é uma contradição em termos”. Em Memória e Identidade, João Paulo II escreveu que Cristo possui uma missão: “real”. A Ele estão submetidas todas as coisas, esperando que ele submeta ao Pai a si mesmo e todas as criaturas, para que Deus seja tudo em todos”.

Um princípio ainda válido

A doutrina da realeza social de Cristo foi fixada e ensinada por Pio XI na encíclica Quas Primas de 1925, mas já os Pontífices anteriores tinham expressado o conteúdo dela, como por exemplo, Leão XIII na encíclica Immortale Dei. Essa, porém, pertence à tradição da Igreja e, como tal, é válida também hoje e o será sempre. Infelizmente, é frequentemente construído um muro entre Doutrina social da Igreja pré-conciliar e a pós-conciliar. De modo que se poderia pensar que esta doutrina, expressa naquele período, hoje não fosse mais válida. Mas não é assim.
A constituição Gaudium et spes do Concílio Vaticano II afirma que “sem o Criador a criatura esvanece” (n. 36). A constituição Lumen Gentium diz que os leigos devem “ordenar segundo Deus as coisas temporais”. O decreto Apostolicam actuositatem ensina que compete aos leigos “informar de espírito cristão a mentalidade e os costumes, as leis e as estruturas da comunidade” (n. 13). Trata-se de referências indubitáveis sobre a realeza de Cristo.
O Catecismo da Igreja católica dedica ao tema, sobretudo o parágrafo 2105, onde reafirma “a realeza de Cristo sobre toda a criação e em particular sobre as sociedades humanas”.
João Paulo II enunciou esta doutrina logo no início, na homilia da sua primeira Missa como Pontífice: “Não tenham medo! Abram, ou melhor, escancarem as portas a Cristo! À sua salvadora potestade abram os confins dos Estados, os sistemas econômicos como também os políticos, os vastos campos da cultura, da civilização, de desenvolvimento. Não tenham medo! Cristo sabe “o que está dentro do homem”. Somente ele o sabe!” Note-se que o Santo Padre não convidou a abrir a Cristo somente os corações, mas também os sistemas econômicos e políticos, cuja construção não é indiferente ao Senhor.
Bento XVI várias vezes reafirmou o conceito da realeza de Cristo: “Com o apagar-se da luz proveniente de Deus, a humanidade é tomada pela falta de orientação, cujos efeitos destrutivos se manifestam sempre mais” (10 de março de 2009). Também o fez em 19 de janeiro de 2012 com uma frase lapidar: “Não existe um reino de questões terrenas que possa ser subtraído ao Criador e ao seu domínio”.
O Papa Francisco escreveu  na Evangelii gaudium: “não é a mesma coisa ter conhecido Jesus ou não O conhecer, não é a mesma coisa caminhar com Ele ou caminhar tateando, não é a mesma coisa poder escutá-Lo ou ignorar a sua Palavra, não é a mesma coisa poder contemplá-Lo, adorá-Lo, descansar n’Ele ou não o poder fazer. Não é a mesma coisa procurar construir o mundo com o seu Evangelho em vez de o fazer unicamente com a própria razão” (n. 266).

Sobre ele se fundamenta a Doutrina social da Igreja

Não se deve esquecer que sobre o princípio da realeza de Cristo se fundamenta a Doutrina social da Igreja. Porque, de fato, nasceu a Doutrina social da Igreja na forma moderna? Bento XVI disse que a exigência da nova evangelização remonta ao século XIX, quando os Estados queriam eliminar Deus da praça pública. A doutrina social inicia então, sobretudo com Leão XIII, para recolocar Deus no centro também da construção da sociedade e da política. De fato, Leão XIII, na Rerum novarum, escreveu que a questão social é “uma questão da qual não é possível encontrar uma resolução que seja válida sem recorrer à religião e à Igreja” (n. 8). Esta convicção não está superada, mas é válida também hoje, tanto é verdade que cem anos depois, na Centesimus annus, João Paulo II retomou e confirmou este ensinamento: “Como então, é preciso repetir que não existe verdadeira solução à questão social fora do Evangelho” (n. 5). Somente a referência a Cristo salva a sociedade e permite de individuar e perseguir verdadeitramente o bem comum. O que outra coisa não é senão a doutrina da realeza social de Cristo.
Isto é de tal modo importante para a Doutrina social da Igreja que, se eliminássemos a doutrina da realeza social de Cristo, esta se transformaria em uma ética social, em uma coleção de boas intenções, em um vade-mécum das boas práticas. Mas os Sumos Pontífices jamais entenderam deste modo a Doutrina social da Igreja. João Paulo II disse que “A doutrina social da Igreja tem por si mesma o valor de um instrumento de evangelização; enquanto tal anuncia Deus e o mistério de salvação em Cristo a cada homem e, pela mesma razão, revela o homem a si mesmo. Nesta luz, e somente nesta luz, se ocupa do estante” (Centesimus annus, n. 55).
A realeza social de Cristo é expressão da pretensão cristã de anunciar a salvação em Cristo. Cristo não é somente útil, assim a doutrina social da Igreja seria um adoçante para os males da sociedade ou um lubrificante para as sedimentações das injustiças, Ele é indispensável. O diz a Caritas in veritate de Bento XVI: “A adesão aos valores do cristianismo é elemento não somente útil, mas indispensável para a construção de uma boa sociedade e de um desenvolvimento humano integral” (n. 4). Como poderia Deus ser somente útil e não indispensável? E como poderia ser indispensável sem experimir uma realeza sobre as coisas temporais? Eis porque a declaração Dignitatis humanae do Vaticano II afirma que “existe um dever moral dos indivíduos e das sociedades para com a verdadeira religião e a única Igreja de Cristo” (n. 1).

A realeza social de Cristo nas democracias?

Mas, como se concilia o princípio da realeza social de Cristo com as modernas democracias do pluralismo e da liberdade de opinião, nas quais todas as visões da vida e todas as religiões são igualmente admitidas? A realeza social de Cristo não é própria de um sistema de Estado confessional no qual a verdadeira religião é protegida, enquanto as outras são somente toleradas? Ou será que a Igreja não já tenha aceitado a moderna democracia e, assim fazendo, não já abandonou definitivamente tudo isso?
Antes de tudo, se deve precisar que a Igreja jamais canonizou a democracia e ainda menos a democracia moderna. João Paulo II no seu livro Memoria e identità escreveu que “A ética social católica apoia, em linha de princípio, a solução democrática, porque mais é mais correspondente com a natureza racional e social do homem. Porém, se mantém distante – é necessário precisar – de canonizar este sistema”. A encíclica Centesimus annus coloca para a democracia condições tais que mostram as grandes carências das suas formas modernas. O Magistério rejeita, sobretudo a ligação entre democracia e relativismo, por outro lado ele liga a democracia com a exigência da verdade de modo que os sistemas democráticos não anulam, mas tornam ainda mais evidente o “dever moral dos indivíduos e das sociedades para com a verdadeira religião e a única Igreja de Cristo”.
Por muito tempo este dever tinha se expressado positivamente na forma do “Estado confessional”, mas também na presente fase histórica em que o Estado confessional não é mais considerado válido não deixa de existir o princípio da realeza de Cristo sobre as realidades temporais. Pode-se dizer que existe um princípio válido sempre e que permanece: a realeza de Cristo. Existem formulações históricas que podem também mudar, como por exemplo, aquela do Estado confessional como o conhecemos até agora. O que nos espera para o futuro depende da Providência de Deus e dos esforço dos fiéis.

Realeza de Cristo e princípio do bem comum

O princípio da realeza social de Cristo é de fundamental importância para esclarecer o fim da Doutrina social da Igreja e do compromisso cristão no mundo: o bem comum. Esta é hoje uma expressão que é entendida em vários modos, frequentemente equivocados. Frequentemente é entendida somente como o bem estar material ou como o bom funcionamento das instituições para a vantagem de todos segundo a justiça. Outras vozes a entendem como o interesse coletivo: quando todos estivessem bem, tivessem um trabalho, o automóvel, a assistência de saúde garantida e assim por diante, existiria então o bem comum. Frequentemente acontece que também os fiéis católicos reduzam o conceito de bem comum a um nível somente horizontal.
O bem comum, ao invés, é um princípio sim para o ordenamento material da sociedade, mas o é ainda mais para o seu ordenamento moral e religioso. O bem comum está sem dúvida diante de nós, como um fim a atingir e não como algo a inventar, mas está também por trás, como uma ordem recebida em herança e que se deve respeitar, como uma ordem desejada por Deus. Não pode existir bem comum sem respeito à ordem natural da criação e não pode existir bem comum sem considerar que o homem é feito por Deus. João XXIII na Pacem in terris dizia que “Por isso, cumpre atuar o bem comum em moldes tais que não só não criem obstáculo, mas antes sirvam à salvação eterna da pessoa (n. 59). Do bem comum fazem parte seja a ordem recebida de Deus criador , seja o fim eterno do homem e a salvação das almas. O conceito de bem comum é então moral e religioso. Deus é o principal bem comum e conhecer o Evangelho é o primeiro dos direitos humanos.
Quando, por exemplo, se ouve dizer que o reconhecimento das uniões entre pessoas homossexuais pode contribuir para o bem comum enquanto se valoriza um cuidado recíproco e uma relação afetiva não se tem em conta o aspecto moral e religioso do bem comum. Não é possível que uma lei contrária à lei moral natural e desejada por Deus criador  contribua para o bem comum. Eis, portanto que a realeza de Cristo é parte integrante do conceito católico de bem comum.

Epílogo

Não existe neutralidade em relação a Deus. Aquele que crê sabe, pela razão e pela fé, que a humanidade somente com suas forças não consegue construir a cidade do homem. A secularização que exclui Deus da praça pública produz mal estar. Dizia Bento XVI em Aparecida no ano de 2007: “Onde Deus é ausente – Deus do rosto humano de Jesus Cristo – estes valores não se mostram com toda a sua força, nem se produz um consenso sobre eles. Não quero dizer que os que não crêem não possam viver uma moralidade elevada e exemplar; digo somente que uma sociedade na qual Deus é ausente não encontra o consenso necessário sobre valores morais e a força para viver segundo o modelo deste valores, também contra os próprios interesses”. A realeza de Cristo salva o mundo de si mesmo e, assim fazendo, o realiza.

Para saber mais
S. Fontana (a cura di), Joseph Ratzinger-Benedetto XVI, Il posto di Dio nel mondo. Potere, politica, legge, Cantagalli, Siena 2013.

Id., Dal Sillabo alla Dignitatis humanae. Rottura? Continuità? Riforma?, “Bollettino di Dottrina sociale della Chiesa” VIII (2012) 2, pp. 69-73.

Id., Nuova evangelizzazione e Dottrina sociale della Chiesa: una messa a punto, “Bollettino di Dottrina sociale della Chiesa” IX (2013) 2, pp. 59-63.


Fonte:

Ver também:

terça-feira, 21 de novembro de 2017

A luta dos Pontífices contra a escravidão, a verdade negada

Anna Bono


"Porque todos sois filhos de Deus pela fé em Jesus Cristo. Todos vós que fostes batizados em Cristo, vos revestistes de Cristo. Já não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher, pois todos vós sois um em Cristo Jesus".
(São Paulo, Gl 3,26-28).

É com semelhantes afirmações que o Cristianismo irrompe no mundo antigo condenando instituições milenares e universais, entre as quais a escravidão, desde então, não parou mais de combater.

A Igreja católica, em particular, desenvolveu um papel fundamental em denunciar e contrastar o tráfico dos escravos africanos. Desde a criação dos primeiros enclaves europeus no continente africano, a Igreja advertiu para não privar os africanos da liberdade não obstante que esses mesmos pratiquem a escravidão. Data de 1492 uma carta do Papa Pio II na qual o Pontífice recorda a um bispo da Guiné portuguesa (atual Guiné-Bissau) que a escravidão dos negros é “magnum scelus”, um grande crime. Depois dele, outros Pontífices interviram para condenar a redução em escravidão dos índios da América e o tráfico dos escravos africanos. O Papa Paulo III em 1537 afirma que não é lícito privar da liberdade e da propriedade “os mesmos indígenas e todos os outros povos, ainda que não pertençam a nossa religião” e impõe a excomunhão àqueles que colaboram com o tráfico dos escravos. A excomunhão é reafirmada pelo Papa Urbano VIII em 1639 e pelo Papa Bento XIV em 1741. O Papa Pio VII aos participantes do Congresso de Viena em 1815 – no qual os países europeus decidiram como reorganizar seus territórios no continente africano – pediu que fosse proibido o comércio dos escravos e em 1839 o Papa Gregório XVI reassumiu os pronunciamentos de condenação dos seus predecessores em uma bula na qual “adverte e suplica” aos cristãos para que não se manchem mais com “tão grande infâmia” da escravidão, “aquele desumano comércio com o qual os negros... são comprados, vendidos e obrigados, às vezes, a cumprir duríssimos trabalhos”. 

Até agora não parece haver dúvidas sobre o esforço da Igreja contra o tráfico dos escravos africanos, são tantos os documentos e os testemunhos que o provam. Mas um livro, recentemente publicado, agora sustenta que ao invés de combater o tráfico, a Igreja de Roma o autorizou, usando a narração bíblica sobre como Cam foi amaldiçoado por Noé para justificar a escravidão dos seus descendentes, que ela participou ativamente, em todas as suas fases, e desta tirou proveito econômico. O livro se intitula “I Papi, la Chiesa cattolica e la tratta atlantica dei neri africani 1418-1839” (Os Papas, a Igreja católica e o tráfico atlântico dos negros africanos). O autor é um sacerdote nigeriano residente na Alemanha, Pius Adiele Onyemechi.

As primeiras críticas do livro elogiam toda a precisão e constância "teutônica" na pesquisa e a consulta de fontes originais, entre as quais o Arquivo secreto do Vaticano, que consentiu a Padre Pius de fornecer “uma contribuição duradoura à pesquisa da verdade histórica”. Sem ter ainda lido o livro, se pode, todavia dizer que precisão e constância na realidade tenham sido usadas seletivamente na procura de qualquer elemento útil para acusar a Igreja, com a intenção de demonstrar a corrupção: isto se as quase 600 páginas do livro trazem somente, unicamente exemplos de conivência e envolvimento com o tráfico enquanto tantos são os exemplos de condenação rigorosa com a qual o autor deveria ter se confrontado, ele como os outros historiadores que estudaram o fenômeno. Sem ter lido, se pode dizer ainda com certeza que o livro contém pelo menos um falso flagrante, grosseiro: a afirmação de que “somente em 1829 a Igreja reconheceu os africanos como seres humanos como qualquer outra pessoa” (na bula do Papa Gregório XVI).

Esta afirmação insustentável é atribuída a Padre Pius por Rita Monaldi e Francesco Sorti, autores de uma crítica no jornal La Stampa, intitulada “Quando la Chiesa amava tutti gli uomini esclusi gli africani” (Quando a Igreja amava a todos os homens, exceto os africanos). Monaldi e Sorti escreveram juntos romances históricos por muito tempo censurados na Itália, porque nos seus livros revelam verdades incômodas, sobretudo sobre pontífices e cardeais do passado. Qualificam-se como “historiadores não acadêmicos”. Mais do que tudo são historiadores aproximativos e pouco documentados. Basta dizer que dão forte confiança a padre Pius porque é nigeriano e porque é um sacerdote católico. No início da crítica também citam “o grande escritor dinamarquês Thorkild Hansen” que na sua “clássica trilogia sobre a escravidão” calcula em 80 milhões os mortos provocados pelo tráfico. Hansen escreveu os seus livros nos anos 60 do século passado. Entre os anos 70 e 80 as cifras do tráfico foram recalculadas graças a pesquisas conduzidas sobre diferentes fontes, inclusive os registros dos portos americanos, destinação dos navios com escravos, as dimensões das embarcações e o número das suas viagens da África para a América. O tráfico atlântico dos escravos, ao qual participaram os traficantes europeus, entre o XVI e o XIX séculos deportou quase 12 milhões de pessoas, vivas, com uma taxa de mortalidade durante a travessia de 13 % aproximadamente. Outros dois milhões de africanos poderiam ter morrido em seguida ao tráfico, sobretudo por causa de guerras e expedições armadas em busca de capturar escravos para vender. Mais elevado – além dos 15 milhões de pessoas deportadas – é o balanço do tráfico árabe, sahariano e oriental, entre o VIII e o XIX séculos. 

Aproximativos, pouco documentados e além do mais tendenciosos.  O relatório – comentam Monaldi e Sorti – permite uma “prestação de contas com o passado exatamente no momento em que a Igreja de Roma, na sua tradição secular e sustento dos mais frágeis, chama à solidariedade para com os imigrantes”; por isto “em Roma não deveria ser desagradável, dada a atenção do Papa Francisco – também ele jesuíta – pelos povos da África”.


Artigos recomendados:

terça-feira, 14 de novembro de 2017

100 ANOS DO OUTUBRO VERMELHO



Em 1917, o comunismo soviético nasce do terror e da mentira



Stefano Magni

Hoje, 7 de novembro de 2017, ocorre os 100 anos do aniversário da assim chamada “Revolução de Outubro”, a tomada de poder de Lenin na Rússia. Iniciou-se assim o primeiro e mais duradouro regime comunista do século XX, aquele da União Soviética. Foi dado início a quase um século de terror e conflitos. Todavia, tanto na Rússia quanto no resto do mundo, se vê ainda no 7 de novembro um aniversário nefasto. Somente quem experimentou na própria pele os piores crimes soviéticos, como o dos povos bálticos, os ucranianos e os poloneses, hoje possui a nítida consciência que o 7 e novembro não pode de nenhum modo ser festejado. Isto porque, ainda a 27 anos da queda da URSS e da consequente abertura de boa parte dos arquivos de Moscou, persistem uma série de mitos e verdadeiras falsificações históricas.

Foi golpe e não revolução

O primeiro mito é que em 7 de novembro se celebra uma “revolução”. A revolução, a verdadeira, aconteceu no 8 de março precedente e se concluiu com a queda do Czar Nicolau II. Nascem daquela revolta um governo provisório e um Soviet (sindicato), cada um destes reivindicava o autêntico papel de representante do povo russo. Os bolcheviques, guiados por Vladimir Lenin, entraram nesta frágil ordem dualista e tomaram o comando. Quando acontece a insurreição armada de 6 a 7 de novembro de 1917 (era ainda outubro no calendário Juliano, ainda em uso na Rússia), a maioria do Soviet era contrária a uma tomada de poder com a força. Lenin precedeu o Congresso dos Soviet de poucos dias, exatamente para pegar os representantes dos outros partidos de surpresa e mostrar a eles um fato consumado. A ação de força é efetuada contra o governo provisório e toda a sua estrutura burocrática. A burocracia foi a primeira a rebelar-se ao golpe de Estado, boicotou o governo golpista desde as primeiras semanas de poder e foi substituída em parte depois das primeiras greves do exército branco. O golpe, conduzido por uma minoria exígua de cerca de 10 a 15 mil homens, teve sucesso somente por causa do caos em que se encontrava o pais: no terceiro ano de participação na Primeira Guerra Mundial a Rússia ocidental foi invadida por milhões de prófugos, todas as regiões ocidentais mais ricas estavam nas mãos dos inimigos austro-alemães, o exército estava em debandada e mínima a sua lealdade em relação a um governo que tinha levado o país à falência. Pode-se, portanto, descrever o golpe bolchevique como um golpe de Estado militar: conduzido por militares que passaram para a causa revolucionária e com a cumplicidade passiva do restante do exército.

O terror vermelho iniciou antes da guerra civil

Segundo a historiografia marxista soviética, a Urss foi sempre uma democracia (popular). Também, segundo uma historiografia mais adoçada, o governo bolchevique atravessou uma primeira fase democrática, que depois teve que ser suprimida somente por causa da guerra civil e, portanto do “comunismo de guerra”. Isto é uma falsidade histórica. Os partidos russos, tanto aqueles dos Soviet como aqueles do parlamento (Duma) foram suprimidos no primeiro ano do regime bolchevique. O único voto livre se deu em dezembro de 1917 para eleger a Assembleia Constituinte. O voto foi caracterizado pela violência e fraude organizados pelos bolcheviques, que tinham se instalado no poder. Não obstante tudo isso, o partido bolchevique era fortemente minoritário quando a Assembleia se reuniu em janeiro de 1918. A este ponto, Lenin fez com que a sede da Assembleia Constituinte fosse ocupada militarmente e suprimiu com a força os primeiros protestos. O terror começou antes da guerra civil. A polícia política bolchevique, a Ceka, antecessora da Kgb, foi instituída já em dezembro de 1917, quando os russos ainda se iludiam de viver em uma nascente democracia.

A guerra civil foi vencida por Lenin não graças aos agricultores, mas contra eles

Imediatamente depois da tomada do poder por parte de Lenin, o exército de dividiu. Uma maior parte prestou juramento ao novo governo, mas minorias consistentes do exército e dos oficiais nas regiões periféricas do império, sobretudo depois da dissolução da Assembleia Constituinte, se rebelaram e formaram exércitos “brancos” contra o nascente Exército Vermelho. Um segundo mito persistente da revolução é que esta sanguinosa guerra civil, que durou de 1918 a 1921 (em algumas regiões remotas da Ásia continuou até 1923) tenha sido vencida por Lenin porque estes combatiam para dar “a terra aos agricultores”. Todavia, a ação dos bolcheviques e do seu recém-constituído Exército Vermelho, foi, sobretudo uma guerra contra os agricultores. Em 1918, Lenin emitiu o primeiro decreto que impunha a requisição de todo o trigo necessário ao esforço bélico. Aos agricultores podia ser deixado somente o mínimo de subsistência. Em 1919, Lenin emitiu um segundo decreto ainda mais duro: o trigo devia ser confiscado em base a quotas calculadas sobre a exigência do Exército Vermelho e das cidades industriais, independentemente das exigências dos agricultores. Caso fosse necessário tomar deles todo o trigo, ainda que isso os fizesse morrer fome, a confiscação acontecia igualmente. Não é por acaso que, durante a guerra civil, as áreas camponesas como a Ucrânia, Don e Kuban, fizeram uma resistência extenuante ao Exército Vermelho.  Mesmo quando os bolcheviques tinham já vencido, a última insurreição contra o regime deles foi uma revolta camponesa, na região de Tambov. Durou de 1920 a 1921, foi reprimida com métodos implacáveis. A repressão e a política das requisições causaram a primeira grande carestia soviética, em 1921-22, que provocou mais de um milhão de mortos de fome e por dificuldades. Não obstante tudo isso, persiste a legenda da “guerra para dar a terra aos agricultores”, também porque é útil para esconder outras realidades ainda mais dramáticas. Antes de tudo: os bolcheviques foram sempre numericamente superiores (de longe) aos exércitos brancos, não obstante tudo isso empregaram três anos (cinco, na Ásia central) para prevalecer. Em alguns momentos, como na primavera e verão de 1919, correram o risco até mesmo de perder. A vitória foi devida a muitos fatores, não menos importantes: o terror. Trockij, que organizou o Exército Vermelho, reintroduziu a pena de morte que tinha sido abolida no início de 1917 e reintroduziu métodos disciplinares muito mais duros em relação aos do exército czarista. Os primeiros campos de concentração, a partir daquele nas ilhas Solovki, foram instituídos não somente para internar ali os prisioneiros de guerra, mas, sobretudo os opositores internos, os “inimigos de classe”, todos aqueles que eram acusados de sabotagem do esforço bélico.  O terror manteve junto um exército desmotivado, por medo mais que por entusiasmo pela causa bolchevique.

Lenin venceu graças ao imperialismo, não contra este

A própria chegada de Lenin na Rússia foi obra de um dos impérios empenhados na Primeira Guerra Mundial: o alemão. Lenin, exilado no tempo da revolução, retornou a Rússia em abril de 1917, graças a uma (já evidente) operação conduzida pelos serviços secretos alemães, que tinham todo o interesse para fazer com que a Rússia entrasse em colapso e libertar tropas da frente oriental. No terceiro ano de guerra, o único interesse de Berlim era a vitória, mesmo se com métodos que hoje chamaríamos de “regime change”, independentemente da ideologia do regime sustentado. Não obstante isso, em fevereiro de 1918, não chegando a um acordo de paz com Berlim e Viena, a Rússia bolchevique foi de novo invadida pelos austro-alemães. A resposta de Lenin foi aquela de dirigir-se aos Aliados contra os Alemães. E foi para responder a seu pedido que os americanos e os ingleses desembarcaram pequenos contingentes em Arcângelo (extremo Norte da Rússia) e os japoneses e outros aliados, entre os quais os italianos, em Vladivostok (no extremo Leste): para proteger os arsenais por eles fornecidos à Rússia nos anos de guerra, para evitar que acabassem nas mãos dos alemães. Quando se chegou a um acordo de paz entre a Rússia bolchevique e os Impérios Centrais, Lenin mudou de frente e pediu a ajuda alemã para expulsar os Aliados. Não o obteve porque os alemães não tinham mais nenhuma intenção de ajudá-lo, nem os meios para abrir uma nova frente. Mas, foi por isso que os Aliados passaram as suas armas para os exércitos brancos (mas não foi suficiente para fazê-los vencer). Lenin teve então um bom tempo apresentando-se como vencedor de uma luta contra todos os imperialismos, até se tornar um paladino das causas de libertação nacional, mas somente porque o império que o sustentou, o alemão, cessou de existir depois de 1918. E, não obstante a terceira e última reviravolta, o próprio Lenin foi também pronto a aceitar o sustento dos impérios inimigos dos alemães.

Estas quatro legendas principais, às quais se acrescentaram muitas outras em seguida, serviam para sustentar a tese de uma “imaculada concepção” da União Soviética. Aquilo que se seguiu e que não pode mais ser ocultado, como o Grande terror de Stalin, os gulag, as deportações de populações inteiras, a carestia artificial na Ucrânia, é tudo atribuído a uma alegada desvirtuação da revolução operada por Stalin, sucessor de Lenin. Retornar à história, distanciando-se da hagiografia marxista, é o único modo para compreender, pelo menos a 100 anos de distância, que não existiu nenhuma traição, exatamente porque não existiu nenhuma “imaculada concepção” da Urss. Foi um regime que tomou o poder com a força e se manteve graças ao terror desde o seu nascimento. Foi abatido graças à fé dos seus súditos e à falência do seu próprio sistema. Mas, nestes 74 anos conseguiu eliminar pelo menos 20 milhões de pessoas da face da terra, sem contar os milhões de mortos feitos pelos regimes que se instauraram como imitação deste em todos os cinco continentes, à medida que se espalhavam os erros do comunismo. Um século de pesadelo, divulgado como um sonho.

Fonte: