"Porque todos sois filhos de Deus pela fé em Jesus Cristo. Todos
vós que fostes batizados em Cristo, vos revestistes de Cristo. Já não há judeu
nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher, pois todos vós sois um
em Cristo Jesus".
(São Paulo, Gl
3,26-28).
É com semelhantes afirmações que
o Cristianismo irrompe no mundo antigo condenando instituições milenares e
universais, entre as quais a escravidão, desde então, não parou mais de
combater.
A Igreja católica, em particular, desenvolveu um papel fundamental em
denunciar e contrastar o tráfico dos escravos africanos. Desde a criação
dos primeiros enclaves europeus no continente africano, a Igreja advertiu para
não privar os africanos da liberdade não obstante que esses mesmos pratiquem a
escravidão. Data de 1492 uma carta do Papa Pio II na qual o Pontífice recorda a
um bispo da Guiné portuguesa (atual Guiné-Bissau) que a escravidão dos negros é
“magnum scelus”, um grande crime.
Depois dele, outros Pontífices interviram para condenar a redução em escravidão
dos índios da América e o tráfico dos escravos africanos. O Papa Paulo III em
1537 afirma que não é lícito privar da liberdade e da propriedade “os mesmos
indígenas e todos os outros povos, ainda que não pertençam a nossa religião” e
impõe a excomunhão àqueles que colaboram com o tráfico dos escravos. A
excomunhão é reafirmada pelo Papa Urbano VIII em 1639 e pelo Papa Bento XIV em
1741. O Papa Pio VII aos participantes do Congresso de Viena em 1815 – no qual
os países europeus decidiram como reorganizar seus territórios no continente
africano – pediu que fosse proibido o comércio dos escravos e em 1839 o Papa
Gregório XVI reassumiu os pronunciamentos de condenação dos seus predecessores
em uma bula na qual “adverte e suplica” aos cristãos para que não se manchem
mais com “tão grande infâmia” da escravidão, “aquele desumano comércio com o
qual os negros... são comprados, vendidos e obrigados, às vezes, a cumprir
duríssimos trabalhos”.
Até agora não parece haver dúvidas sobre o esforço da Igreja contra
o tráfico dos escravos africanos, são tantos os documentos e os testemunhos que
o provam. Mas um livro, recentemente publicado, agora sustenta que ao invés de
combater o tráfico, a Igreja de Roma o autorizou, usando a narração bíblica
sobre como Cam foi amaldiçoado por Noé para justificar a escravidão dos seus
descendentes, que ela participou ativamente, em todas as suas fases, e desta
tirou proveito econômico. O livro se intitula “I Papi, la Chiesa cattolica e la tratta atlantica dei neri africani
1418-1839” (Os Papas, a Igreja católica e o tráfico atlântico dos negros
africanos). O autor é um sacerdote nigeriano residente na Alemanha, Pius Adiele
Onyemechi.
As primeiras críticas do livro elogiam toda a precisão e constância
"teutônica" na pesquisa e a consulta de fontes originais, entre
as quais o Arquivo secreto do Vaticano, que consentiu a Padre Pius de fornecer
“uma contribuição duradoura à pesquisa da verdade histórica”. Sem ter ainda
lido o livro, se pode, todavia dizer que precisão e constância na realidade
tenham sido usadas seletivamente na procura de qualquer elemento útil para
acusar a Igreja, com a intenção de demonstrar a corrupção: isto se as quase 600
páginas do livro trazem somente, unicamente exemplos de conivência e envolvimento
com o tráfico enquanto tantos são os exemplos de condenação rigorosa com a qual
o autor deveria ter se confrontado, ele como os outros historiadores que
estudaram o fenômeno. Sem ter lido, se pode dizer ainda com certeza que o livro
contém pelo menos um falso flagrante, grosseiro: a afirmação de que “somente em
1829 a Igreja reconheceu os africanos como seres humanos como qualquer outra
pessoa” (na bula do Papa Gregório XVI).
Esta afirmação insustentável é atribuída a Padre Pius por Rita Monaldi
e Francesco Sorti, autores de uma crítica no jornal La Stampa, intitulada “Quando la Chiesa amava tutti gli uomini
esclusi gli africani” (Quando a Igreja amava a todos os homens, exceto os
africanos). Monaldi e Sorti escreveram juntos romances históricos por muito
tempo censurados na Itália, porque nos seus livros revelam verdades incômodas,
sobretudo sobre pontífices e cardeais do passado. Qualificam-se como
“historiadores não acadêmicos”. Mais do que tudo são historiadores
aproximativos e pouco documentados. Basta dizer que dão forte confiança a padre
Pius porque é nigeriano e porque é um sacerdote católico. No início da crítica
também citam “o grande escritor dinamarquês Thorkild Hansen” que na sua
“clássica trilogia sobre a escravidão” calcula em 80 milhões os mortos
provocados pelo tráfico. Hansen escreveu os seus livros nos anos 60 do século
passado. Entre os anos 70 e 80 as cifras do tráfico foram recalculadas graças a
pesquisas conduzidas sobre diferentes fontes, inclusive os registros dos portos
americanos, destinação dos navios com escravos, as dimensões das embarcações e
o número das suas viagens da África para a América. O tráfico atlântico dos
escravos, ao qual participaram os traficantes europeus, entre o XVI e o XIX
séculos deportou quase 12 milhões de pessoas, vivas, com uma taxa de
mortalidade durante a travessia de 13 % aproximadamente. Outros dois milhões de
africanos poderiam ter morrido em seguida ao tráfico, sobretudo por causa de
guerras e expedições armadas em busca de capturar escravos para vender. Mais
elevado – além dos 15 milhões de pessoas deportadas – é o balanço do tráfico
árabe, sahariano e oriental, entre o VIII e o XIX séculos.
Aproximativos, pouco documentados e além do mais tendenciosos. O relatório – comentam Monaldi e Sorti – permite
uma “prestação de contas com o passado exatamente no momento em que a Igreja de
Roma, na sua tradição secular e sustento dos mais frágeis, chama à
solidariedade para com os imigrantes”; por isto “em Roma não deveria ser
desagradável, dada a atenção do Papa Francisco – também ele jesuíta – pelos
povos da África”.
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