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terça-feira, 21 de novembro de 2017

A luta dos Pontífices contra a escravidão, a verdade negada

Anna Bono


"Porque todos sois filhos de Deus pela fé em Jesus Cristo. Todos vós que fostes batizados em Cristo, vos revestistes de Cristo. Já não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher, pois todos vós sois um em Cristo Jesus".
(São Paulo, Gl 3,26-28).

É com semelhantes afirmações que o Cristianismo irrompe no mundo antigo condenando instituições milenares e universais, entre as quais a escravidão, desde então, não parou mais de combater.

A Igreja católica, em particular, desenvolveu um papel fundamental em denunciar e contrastar o tráfico dos escravos africanos. Desde a criação dos primeiros enclaves europeus no continente africano, a Igreja advertiu para não privar os africanos da liberdade não obstante que esses mesmos pratiquem a escravidão. Data de 1492 uma carta do Papa Pio II na qual o Pontífice recorda a um bispo da Guiné portuguesa (atual Guiné-Bissau) que a escravidão dos negros é “magnum scelus”, um grande crime. Depois dele, outros Pontífices interviram para condenar a redução em escravidão dos índios da América e o tráfico dos escravos africanos. O Papa Paulo III em 1537 afirma que não é lícito privar da liberdade e da propriedade “os mesmos indígenas e todos os outros povos, ainda que não pertençam a nossa religião” e impõe a excomunhão àqueles que colaboram com o tráfico dos escravos. A excomunhão é reafirmada pelo Papa Urbano VIII em 1639 e pelo Papa Bento XIV em 1741. O Papa Pio VII aos participantes do Congresso de Viena em 1815 – no qual os países europeus decidiram como reorganizar seus territórios no continente africano – pediu que fosse proibido o comércio dos escravos e em 1839 o Papa Gregório XVI reassumiu os pronunciamentos de condenação dos seus predecessores em uma bula na qual “adverte e suplica” aos cristãos para que não se manchem mais com “tão grande infâmia” da escravidão, “aquele desumano comércio com o qual os negros... são comprados, vendidos e obrigados, às vezes, a cumprir duríssimos trabalhos”. 

Até agora não parece haver dúvidas sobre o esforço da Igreja contra o tráfico dos escravos africanos, são tantos os documentos e os testemunhos que o provam. Mas um livro, recentemente publicado, agora sustenta que ao invés de combater o tráfico, a Igreja de Roma o autorizou, usando a narração bíblica sobre como Cam foi amaldiçoado por Noé para justificar a escravidão dos seus descendentes, que ela participou ativamente, em todas as suas fases, e desta tirou proveito econômico. O livro se intitula “I Papi, la Chiesa cattolica e la tratta atlantica dei neri africani 1418-1839” (Os Papas, a Igreja católica e o tráfico atlântico dos negros africanos). O autor é um sacerdote nigeriano residente na Alemanha, Pius Adiele Onyemechi.

As primeiras críticas do livro elogiam toda a precisão e constância "teutônica" na pesquisa e a consulta de fontes originais, entre as quais o Arquivo secreto do Vaticano, que consentiu a Padre Pius de fornecer “uma contribuição duradoura à pesquisa da verdade histórica”. Sem ter ainda lido o livro, se pode, todavia dizer que precisão e constância na realidade tenham sido usadas seletivamente na procura de qualquer elemento útil para acusar a Igreja, com a intenção de demonstrar a corrupção: isto se as quase 600 páginas do livro trazem somente, unicamente exemplos de conivência e envolvimento com o tráfico enquanto tantos são os exemplos de condenação rigorosa com a qual o autor deveria ter se confrontado, ele como os outros historiadores que estudaram o fenômeno. Sem ter lido, se pode dizer ainda com certeza que o livro contém pelo menos um falso flagrante, grosseiro: a afirmação de que “somente em 1829 a Igreja reconheceu os africanos como seres humanos como qualquer outra pessoa” (na bula do Papa Gregório XVI).

Esta afirmação insustentável é atribuída a Padre Pius por Rita Monaldi e Francesco Sorti, autores de uma crítica no jornal La Stampa, intitulada “Quando la Chiesa amava tutti gli uomini esclusi gli africani” (Quando a Igreja amava a todos os homens, exceto os africanos). Monaldi e Sorti escreveram juntos romances históricos por muito tempo censurados na Itália, porque nos seus livros revelam verdades incômodas, sobretudo sobre pontífices e cardeais do passado. Qualificam-se como “historiadores não acadêmicos”. Mais do que tudo são historiadores aproximativos e pouco documentados. Basta dizer que dão forte confiança a padre Pius porque é nigeriano e porque é um sacerdote católico. No início da crítica também citam “o grande escritor dinamarquês Thorkild Hansen” que na sua “clássica trilogia sobre a escravidão” calcula em 80 milhões os mortos provocados pelo tráfico. Hansen escreveu os seus livros nos anos 60 do século passado. Entre os anos 70 e 80 as cifras do tráfico foram recalculadas graças a pesquisas conduzidas sobre diferentes fontes, inclusive os registros dos portos americanos, destinação dos navios com escravos, as dimensões das embarcações e o número das suas viagens da África para a América. O tráfico atlântico dos escravos, ao qual participaram os traficantes europeus, entre o XVI e o XIX séculos deportou quase 12 milhões de pessoas, vivas, com uma taxa de mortalidade durante a travessia de 13 % aproximadamente. Outros dois milhões de africanos poderiam ter morrido em seguida ao tráfico, sobretudo por causa de guerras e expedições armadas em busca de capturar escravos para vender. Mais elevado – além dos 15 milhões de pessoas deportadas – é o balanço do tráfico árabe, sahariano e oriental, entre o VIII e o XIX séculos. 

Aproximativos, pouco documentados e além do mais tendenciosos.  O relatório – comentam Monaldi e Sorti – permite uma “prestação de contas com o passado exatamente no momento em que a Igreja de Roma, na sua tradição secular e sustento dos mais frágeis, chama à solidariedade para com os imigrantes”; por isto “em Roma não deveria ser desagradável, dada a atenção do Papa Francisco – também ele jesuíta – pelos povos da África”.


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