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terça-feira, 15 de maio de 2018

"Sem um Criador, também a política perde a esperança"



 “Sem referência ao Criador, a ordem natural se enfraquece e pouco a pouco é perdida de vista”. São as palavras do Arcebispo Giampaolo Crepaldi que apresentou no Senado italiano o livro de Bento XVI “Libertar a liberdade”. “A política pode ser ainda fonte de esperança e a fé é capaz de transfundir também na vida política um realismo cristão. Não fechando os olhos diante da realidade, mesmo nas suas formas mais cruas e no não cessar de confiar na ajuda de Deus, que é o Senhor da história”.






Libertar a liberdade. Fé e política no terceiro milênio (Cantagalli, Siena 2018), o novo volume de Joseph Ratzinger/Bento XVI, foi apresentado em Roma, na sexta-feira 11 de maio, às 18 horas, na Sala Zuccari do Palazzo Giustiniani. Depois de uma saudação do Presidente do Senado Maria Elisabetta Alberti Casellati, falaram: o arcebispo Georg Gänswein, prefeito da Casa Pontifícia e secretário particular do Papa emérito, o presidente do Parlamento Europeu Antonio Tajani, o arcebispo de Trieste Giampaolo Crepaldi. O encontro foi moderado por Pierluca Azzaro, curador do volume, que contém uma prefação do Papa Francisco e um texto inédito do Papa emérito Bento XVI. Publicamos aqui em seguida o texto integral da intervenção do Arcebispo Giampaolo Crepaldi.

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No livro que temos a honra de apresentar hoje, convergem três Pontífices e isto o torna verdadeiramente singular e de grande interesse. Existem alguns textos escolhidos do teólogo Joseph Ratzinger, junto a alguns ensinamentos seus expressados durante o seu Pontificado. Existe a prefação do Papa Francisco. E existe também uma referência, implícita, a são João Paulo II. De fato, o título “Libertar a liberdade” do volume é tomado do parágrafo 86 da Veritatis splendor e exprime o sentido e  as intenções de toda a encíclica sobre a moral. Esta “convergência” é, como dizia, de grande interesse porque marca a continuidade e no mesmo tempo a novidade – a novidade na continuidade, se poderia dizer – dos ensinamentos da Igreja sobre o tema das relações entre fé e política.

A política, a moral, a fé: estes são os três termos que fazem a moldura do conteúdo do livro e que, é preciso reconhecer, constituem o quadro de toda a Doutrina social da Igreja. A política necessita da moral. Ela não é diretamente moral, porque possui uma legítima autonomia de critérios e de métodos. Porém, não pode prescindir da moral, como testemunham os cidadãos comuns que são frequentemente muito rigorosos em julgar a política exatamente do ponto de vista ético, e como testemunham também os homens políticos que sentem sempre a necessidade de justificar segundo o bem e a justiça as escolhas que fazem. Não existe homem político que não apresente como “boa” e “justa” a ação que está para realizar. Também quando se alcança objetivos de ordem material – por exemplo, de caráter econômico ou produtivo – em política, assume sempre também uma justificação legal ao bem comum. Sobre este último existem visões frequentemente diferentes, mas isto não impede aos políticos, por primeiro, de apelar para eles na justificação de suas escolhas. E exatamente isto demonstra que a política, mesmo sendo autônoma, não se fundamenta por si só. Procura a sua última legitimidade não nos resultados alcançados, nem no mandato eleitoral, mas no bem comum, ou seja, de todos e de cada um, que ela é chamada a realizar.

Hoje vivemos em um contexto de pluralismo ético. Porém, todos nos reconhecemos em alguns princípios morais de fundo, que estão também presentes na nossa Constituição republicana. Isto significa que se trata de um pluralismo “inquieto”, que de um lado sente o apelo da liberdade, mas ao mesmo tempo percebe a atração pela verdade. Não é por acaso que a mesma discussão política toque frequentemente temáticas de grande significado ético, não somente de moral individual, mas também de moral pública. Não é este o sinal de um pluralismo “inquieto”? Pluralismo que testemunha, mesmo no conflito das interpretações e das valorizações, que a política não basta jamais a si mesma e que os políticos estão ali também por algo mais que a política. E que exatamente isto – o fato de estar a serviço de algo além de si – doa à política a sua dignidade última.

É a este ponto que entra em jogo a fé, a qual abre seja à política que à vida moral janelas que elas não seriam capazes de abrir sozinhas. Na vida humana tudo tem necessidade de ser salvo dos perigos que porta consigo de involução. Se a política absolutiza a si mesma se transforma em técnica ou em ideologia. Se a moral absolutiza a si mesma se torna uma série de proibições legalistas. A respiração da fé cristã pode ajudar tanto uma como a outra – não as transformando elas mesmas em fé, mas, deixando-as na sua legítima autonomia – oferecendo-as, porém uma finalidade ulterior, um impulso da consciência em direção ao alto e para o horizonte, eco de um chamado do além e para o além. Disso não pode derivar nenhum dano nem à política, nem à moral, que não são negadas, mas confirmadas e, poderíamos dizer, “possibilitadas de respirar melhor”.
 Concentrei minha fala nestes três pontos – a política, a moral, a fé cristã – porque a relação entre elas de recíproca “purificação” representa um dos pontos mais interessantes dos ensinamentos de Bento XVI neste livro, confirmados pelo Papa Francisco. De fato, não é somente a fé a purificar a política e a moral, mas também o contrário. Trata-se de uma circularidade virtuosa. No famoso debate de 2004 com Habermas, o cardeal Ratzinger notava que o niilismo político tem necessidade da purificação da fé assim como o fundamentalismo terrorista tem necessidade da purificação da razão. Entre razão e fé existe circularidade.

A vida política dos representantes do povo, a escolha dos legisladores deputados a isso pela vontade popular, representam um alto papel institucional, mas com isto não estão isentos dos problemas de consciência, antes – se assim se pode dizer – estes problemas aqui são ainda mais centrais. Na obra que hoje apresentamos estão presentes também Santo Agostinho e o Cardeal Newman, autores muito amados por todos e três Pontífices envolvidos nesta publicação. Os dois grandes pensadores, como bem sabemos, indagaram profundo a consciência humana, oferecendo ideias incomparáveis também para a consciência do político. A consciência é o último tribunal para o nosso agir, mas não o único. Bento XVI nos ensinou que a consciência tem necessidade de uma autoridade que coloque em movimento a sua anamnesis, a recuperação mais profunda da sua história e das próprias motivações. O motivo último pelo qual existe necessidade da autoridade é que ela induz este processo de verificação contínua da consciência consigo mesma.

Eis porque na Igreja existe a autoridade eclesiástica, e eis porque na sociedade e na política existe outra autoridade que consiste na verdade. O tribunal da verdade ao qual Sócrates entendia submeter os seus próprios julgamentos. Quando a consciência, também aquela do homem político, entra em si mesma e si concede ao processo da anamnesis – explica Bento XVI – ela encontra a verdade, que habita in interiore homine, a verdade que unifica enquanto as opiniões dividem. A política é a atividade e algumas vezes ativismo, mas ao mesmo tempo sente a necessidade deste olhar interior, porque a verdade é conhecida seja pelo intelecto que pelo coração. Papa Francisco, na Prefação do livro, indica muitas destas verdades que também para a política devem permanecer tais: o respeito pela vida, a tutela da família, a procura da justiça para todos. A consciência pessoal é capaz de vê-las também quando, na arena política, ela sofre solavancos, e quando o faz se dá conta que não o faz somente com o intelecto, mas também com o coração.

Na sua Prefação, Papa Francisco insiste muito em assinalar a importância de um olhar de amor. No final das contas, também o reconhecer a dignidade da pessoa, o valor da família, da vida humana, da educação dos jovens segundo o bem e a virtude... são atos de amor, de amor pela verdade das coisas que precede os Parlamentos e as Constituições. Existe algo que precede a política – como já disse precedentemente – e o ter conta disso por parte da política não implica uma sua diminuição, mas o reconhecimento da sua honra e da sua verdadeira dignidade. No famoso discurso em Bundestag da Alemanha, feito por Bento XVI em 2011, se dizia que a maior virtude do político é aquela que Salomão pediu a Deus: a sabedoria pra saber guiar os homens no bem, porque a política não é administração de coisas, mas governo de homens.

O livro traz também um inédito de Bento XVI sobre o tema dos direitos humanos e do seu fundamento, assinalando o perigo que a multiplicação dos direitos porte consigo a destruição da ideia de direito, processo este que creio seja evidente nos nossos dias. Os direitos humanos pertencem ao homem como sujeito de direito, mas para a sua legitimação pressupõem os deveres que derivam da ordem natural finalisticamente entendidos. Em muitos casos, os direitos são ao invés absolutizados e, portanto, infinitamente multiplicados. 

Pergunta-se por que isso acontece. A resposta principal dada por Bento XVI no seu inédito é que o plano natural não consegue manter-se como tal, e, portanto alcançar os seus fins naturais, sem o plano sobrenatural. Sem a referência ao Criador, a ordem natural se enfraquece e aos poucos é perdida de vista. Concepção esta que Papa Francisco confirma na sua Prefação. É fundamentado aqui o papel público da fé católica que ostenta a pretensão de honrar profundamente as exigências naturais da pessoa e da sociedade enquanto “religião da face humana” e pede que este seu papel lhe seja reconhecido também na política. Trata-se de uma solicitação – exigente – de liberdade religiosa.

O livro que estamos apresentando é denso de conteúdos e deve ser lido como tal, mas é também um prenúncio de esperança e como tal deve ser também valorizado. Nas atuais dificuldades, provavelmente não diferentes daquelas de outros períodos, mas a nós mais evidentes porque mais presentes e vividas, a política pode ser ainda fonte de esperança. Pode parecer temerário e imprudente afirmá-lo, mas a fé é capaz de transfundir também na vida política um “realismo cristão”. Isso consiste no não fechar os olhos diante da realidade, mesmo nas suas formas mais cruéis, e no não negligenciar de procurar todas as saídas concretamente em nossa posse para resolver os problemas e encontrar para eles as justas soluções. Mas consiste também em não cessar de confiar na ajuda de Deus, que é o Senhor da história. O cristianismo é uma religião de esperança, como Bento XVI ilustrou bem na encíclica Spe salvi.

Esta é uma virtude teologal, mas não por isso ela não se estende também em âmbitos que poderíamos considerar profanos ou laicos. A vida política tem necessidade de pressupostos – como recordei outras vezes – que ela não sabe dar a si mesma. Um destes pressupostos é exatamente a esperança. Ela ajudou a tantos valentes homens políticos a fazer escolhas contra o próprio interesse e os impulsionou a fortes renúncias para manter-se fiéis ao bem do próprio País e do próprio povo. Isso aconteceu – recordemos – não somente para homens políticos que professavam a fé, mas também para homens políticos que, pelo menos expressamente (mas é somente o Senhor quem julga o que se agita no profundo dos corações) não exprimiam uma fé religiosa. A esperança é um valor cristão e é um valor humano. É um valor que Cristo elevou a virtude divina. A fé religiosa doa à vida social muitos auxílios: um destes é exatamente a esperança. E o livro que estamos apresentando contém uma confortante e encorajante mensagem de esperança, para todos. Também por isto somos agradecidos ao Papa Bento. 


Fonte:

Texto da Veritatis splendor:

Texto da Spe salvi:

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