Pesquisar no blog

terça-feira, 1 de maio de 2018

Para uma reta liturgia


 


“Parece que hoje grande parte da liturgia, pelo menos na sua atuação prática, tenha sido reduzida somente a dois movimentos querigmático-catequético e epiclético-comunicativo com o desaparecimento ou a forte redução da posição latrêutico-contemplativa”.

Escreve assim Pe. Enrico Finotti em uma das suas respostas dedicadas à liturgia. Em um primeiro momento parece linguagem para iniciados, mas Pe. Finotti não deixa jamais os seus interlocutores sem explicação. Sempre atento às observações dos fiéis, o autor fica impressionado pelo fato de que um deles mostre admiração depois de ter visto um sacerdote em oração, e consequentemente se interroga: se na liturgia a dimensão da oração, aos olhos de um fiel comum, não aparece mais como central, quer dizer que existe algo que não funciona. Porque a liturgia é por sua natureza oração pública. E então eis a explicação: hoje a liturgia privilegia os momentos em que o sacerdote se dirige ao povo para anunciar a palavra de Deus (posição querigmática) e aqueles em que se dirige aos fiéis para agir sobre eles com os mesmos gestos de Jesus (posição epiclética), mas não favorece os momentos em que o sacerdote, representando o Senhor como cabeça do povo (posição latrêutica), deveria dirigir-se a Deus como assembleia e guiar os fiéis no louvor e na adoração.

Na liturgia atual existe, portanto, como uma descompenso, um desequilíbrio, e é evidente que tudo isso tem a ver com a posição do sacerdote. Uma posição que, na liturgia reformada do Concílio Vaticano II, é funcional por causa da ideia de Missa entendida como mesa, mas não como sacrifício.
Quem defende a reforma desejada pelo Concílio acusa facilmente de “tradicionalismo” todos aqueles que apresentam o problema da posição assumida pelo sacerdote durante a Missa. Mas, não se trata de nostalgia e não é uma fixação. Se trata, ao invés, de entrar no significado profundo da ação litúrgica. E, se é feito este passo, a questão do conversi ad Dominum não pode não aparecer como decisiva. Como escreve bem Pe. Finotti, “se deve reconhecer que celebrar a parte sacrifical da Missa (do ofertório à comunhão) dirigidos no mesmo sentido em direção ao qual olha toda a assembleia, segundo a tradição constante da Igreja, suscita em modo imediato e eficaz aquele comum (sacerdote e povo) olhar ad Deum que é constitutivo da liturgia”.

As perguntas que os fiéis colocam ao liturgista na revista Liturgia: culmen et fons se referem um pouco a tudo: da vigília de Natal à Via Sacra, das festas de padroeiro à semana pela unidade dos cristãos. Além do mais, muitos desejam entrar em detalhe nas questões, interrogando-se em modo sempre mais específico. Por exemplo: o que é precisamente um rito e quais são os seus componentes? Quem gerencia as regras da liturgia renovada? Qual é a importância da veste sacerdotal? Qual final teve a liturgia das horas?

O valor de Pe. Finotti está na capacidade de unir respeito ao sagrado e o bom senso. A palavra chave é equilíbrio. Que significa respeitar a hierarquia dos valores. À Missa se vai não para colocar em cena uma ceia, mas para renovar o sacrifício eucarístico. Não se vai para exibir a criatividade humana, mas para render glória a Deus. Não se vai para gratificar o protagonismo do sacerdote ou da assembleia, mas para rezar e adorar. Somente se os valores são colocados na justa hierarquia a ação litúrgica que daí brota resulta correta.

Importante são as palavras que Pe. Finotti dedica ao equívoco sobre a autenticidade da liturgia, como se autêntico correspondesse a espontâneo. Respondendo a uma pergunta que fala do mito da “animação” da Missa, mito modernista que é fonte de infinitos abusos, o autor explica: “Autêntico não é o que é espontâneo e irreflexivo, mas a autenticidade exige adesão à verdade e força de vontade para realizar nas obras o esplendor do verdadeiro, do bom e do belo. A objetividade é, portanto, uma condição imprescindível da autenticidade, que é ao invés poluída por um subjetivismo estéril privado de toda referência à verdade. A verdadeira autenticidade é o fruto maduro de um itinerário que implica a procura intelectual, a formação espiritual e o exercício da vontade. A disciplina e o sacrifício na constante obediência à Igreja são condições necessárias para atingir tal virtude, mantê-la e defendê-la. O erro em tal matéria provoca uma desafeição pelo inteiro aparato litúrgico objetivo da Igreja (Missa, sacramentos, sacramentais, ano litúrgico...) e uma substituição completa com criações subjetivas privadas ou comuns, uma “liturgia” subjetivista que não representa o pensamento de Cristo, não contém o seu mistério e por isso não salva. Ela é no final das contas um ato idolátrico e uma pia ilusão, o reflexo sempre mutável dos próprios sentimentos e das sensibilidades do “grupo celebrante”. Mas assim a dimensão subjetiva e privada do grupo assumiu o lugar daquela objetiva e pública do povo, qual referente primário da liturgia”.

Creio que estas palavras deveriam ser estampadas e distribuídas em todas as igrejas, em benefício dos fiéis, mas também dos sacerdotes. Em nome do mito da animação litúrgica (totalmente arbitrária e fundada unicamente sobre o protagonismo humano) existe uma imposição do espontaneísmo. Parece um contrassenso, ou mesmo é o que de fato aconteceu. E os resultados estão sob os olhos, e os ouvidos, de todos.

Obviamente a liturgia espontaneísta anda ao lado de uma imagem de um Deus bonzinho, como observa justamente um leitor que escreve: “Estamos já impregnados de uma concepção redutiva do conceito de Deus: um Deus bonzinho que depôs toda sua majestade e que solicita uma confiança quase banal”. E a este Deus bonzinho nos aproximamos, como consequência, “com uma linguagem de trabalho e imediata, não mais atenta ao sentido da adoração que foi solicitada a Moisés junto à sarça ardente”.

É dramaticamente verdadeiro. E desta incapacidade de distinguir o sagrado do profano a despesa fica para a liturgia. O que não é problema formal, porque quando se fala de liturgia a forma é a substância.
E aqui, Pe. Finotti vai direto ao núcleo da questão: “É um dado constatável que é já muito difusa uma mentalidade boazinha sobre Deus pela qual Ele é considerado tão disponível a nós e tão facilmente acessível a ponto de negar todo esforço de purificação e de procura no conhecer a sua vontade, discernir a sua palavra e seguir as suas leis. Um Deus bonzinho, fácil na relação e privado de toda obscuridade, se torna o reflexo da nossa psicologia, iludindo-nos diante de um ídolo fruto da nossa fantasia. Uma ideia a preço baixo de um Deus totalmente escravo de toda nossa inclinação é justificada com o recurso ao termo evangélico Abbà, quase que esta confiança eliminasse já todo resíduo de majestade, de grandeza e de mistério. Um Deus assim próximo a nós a ponto de ser substituível a qualquer nosso capricho se torna um “Deus self service”,  que no final admite todo capricho da nossa frágil e retorcida psicologia. Com uma semelhante visão de Deus, toda forma litúrgica é comprometida desde suas raízes mais profundas enquanto o subjetivismo extremo afeta as próprias bases da espiritualidade e do conceito de Deus e da relação íntima com ele na vida espiritual”.

É preciso reconhecer que, hoje, é necessário coragem para falar assim. Mas o nó está exatamente aqui. A degradação na ação litúrgica é fruto de uma teologia distorcida, que colocou o homem, e não Deus, sobre o altar. Uma teologia que pede que seja celebrado o homem, não Deus.

Escreve ainda Pe. Finotti: “Se é perdido o sentido interior da adoração e da submissão à majestade dAquele que permanece sempre inefável além da nossa capacidade, não podemos esperar uma forma litúrgica conforme a precisas regras objetivas e inspiradas ao gosto da grandeza e do mistério, conatural à forma clássica da liturgia da Igreja no inteiro arco  da tradição. É ainda evidente que todos aqueles que são vítimas de uma semelhante visão preferem o espontaneísmo, fujam de toda submissão a normas rituais, e consideram autêntica uma celebração o mais possível livre como a Missa celebrada em um prado ou em um contexto recreativo. A liberdade caprichosa da relação interior com Deus priva de toda orientação objetiva, de toda verificação doutrinal conforme a uma sadia ortodoxia e de uma consonância com a tradição disciplinar maturada nos séculos, se reflete em uma liturgia em acordo com este frágil estado interior, que se declina nas expressões mais disparatas e contraditórias que surgem de uma espiritualidade já doente e selvagem até os recônditos sentimentos da alma. A infinita bondade e misericórdia de Deus não podem jamais ser separadas da sua justiça, a sua proximidade e condescendência não podem jamais despojar-se da sua majestade e o respeito dos direitos divinos não pode jamais ser desconsiderado impunemente pela criatura, que “sem o criador se esvai” (GS 36). Portanto, a celebração reta da liturgia não pode jamais prescindir do reto conceito de Deus e da recepção completa e sinfônica dos seus atributos divinos. A sadia teologia está sempre na base de uma reta liturgia”.

O que acrescentar? Somente um sentido agradecimento a Pe. Enrico Finotti por este seu serviço à verdade.

Aldo Maria Valli

O texto aqui apresentado é a prefação do novo livro de Pe. Enrico Finotti Se tu conoscessi il dono di Dio. Il liturgista risponde, editado por Chorabooks e disponível em Amazon


Fonte:

Um comentário:

  1. Padre Cícero, sua bênção! Salve Maria!

    Que postagem maravilhosa! Eu tenho especulado que, hodiernamente, as pessoas que conseguem construir uma realidade Teocêntrica, tendo bem abertos os olhos, o coração e a mente à Verdade são extremamente privilegiadas.

    Venho de um entorno muito pouco propício à santidade, conquanto todos se denominem católicos (por mera expressão cultural). Ao acontecer o milagre em minha vida de ser convidada pelo Senhor a experienciar uma conversão autêntica, comecei prontamente a explicar às pessoas como se inserir na doutrina salvífica de Cristo, por meio de diretrizes concretas que fui aprendendo com as leituras que o Senhor me ia apresentando, bem como pela nova realidade de orações mais amadurecidas.

    E tamanha passou a ser minha perplexidade ao notar que muita gente não vê sentido numa conversão verdadeira porque simplesmente não consegue compreender nada, nem ao menos a diferença entre caridade e justiça humana. Conheço gente muito inteligente que achou o livro "A imitação de Cristo", por exemplo, extremamente difícil, e acabou por desistir. É fato que muitas pessoas não conseguem compreender o valor das mortificações porque não compreendem o mistério da Inabitação Trinitária, e não logram romper o loop infinito de distrações - pecados mais graves - distrações, o que acaba por compremeter a possibilidade de uma vida interior.

    No tocante à Liturgia, lembro-me de como achava a Missa enfadonha, há alguns anos, e como, após descobrir a Missa Tridentina, rezada pelo querido padre Sérgio (à época, eu morava em Brasília), fui tocada profundamente por toda a atmosfera de reverência e sobrenaturalidade. Isso, de fato, me levou a uma ânsia por conhecer a Igreja verdadeira, que ninguém jamais me havia apresentado. E, quanto mais a conhecia, mais me apaixonava, mais aumentava meu respeito pelo Senhor, e mais vontade tinha de me afastar de toda uma vida de vaidade, soberba, idolatria a dinheiro e a status...de repente, foi-me suscitada toda uma sensação de pertencimento, de convicção de que o Senhor era tudo o que minha alma buscava, e, eu, totalmente desconectada de ela, não compreendia seus apelos, e achava que me sentiria preenchida pelas ilusões mundanas.

    E quantas pessoas iguais a mim vagueiam pelo mundo...se elas fossem iluminadas pelo Paráclito, como deixariam tudo para se inebriarem com o amor de Cristo...como conseguiriam compreender a beleza de uma Missa mais silenciosa e como se sentiriam plenamente felizes e agradecidas por ela...

    Não sei...os caminhos do Senhor são sempre muito misteriosos, e mais misterioso ainda é o momento em que se dá uma abertura dentro de cada um de nós pela qual o sr. Jesus nos atrai definitivamente para Ele.

    Enfim...

    Deus o abençoe e o faça santo!
    Paz e bem!

    ResponderExcluir